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Vidas de portugueses no ano de superavit comercial de 1943

Em 1940, a capital portuguesa era uma cidade com mais de oitocentos mil de habitantes onde desembocava o êxodo rural dos que fugiam à fome e à miséria do mundo rural. Na década anterior, cerca de cento e cinquenta mil novos migrantes tinham vindo juntar-se aos pobres já residentes em Lisboa contribuindo para o aumento da degradação da habitação, da mendicidade e da prostituição. O grosso da população urbana era constituída, além de uma pequena elite operária, por uma maioria de trabalhadores analfabetos e sem formação profissional, pagos com baixíssimos salários e sem direitos sindicais, de vendedores ambulantes e de sub-empregados trabalhando “ao biscate”. Amontoavam-se em barracas como as do Bairro das Minhocas, em pátios, em quartos e mesmo em grutas como as “Furnas de Monsanto”. Os homens, vestidos de ganga e alpercatas, e as mulheres, com a tradicional saia rural, xaile e lenço raramente se deslocavam ao centro de Lisboa, a não ser para a venda ambulante ou a esmola. Permaneciam na cintura industrial da zona ocidental da cidade, Alcântara-Alto de Santo Amaro, ou da zona oriental, nos bairros degradados da Graça e de Alfama.

 

A miséria em que a maioria da população assalariada portuguesa vivia era tal que mesmo um homem do regime, Ferreira Dias Júnior (Linha de Rumo - Notas da Economia Portuguesa, vol. I, Lisboa, 1946 (2.ª ed) (1.ª, 1945), ministro do Comércio e Indústria em 1940, reconheceu que, enquanto operário alemão ganhava o dobro do que necessitava para ele e a família se alimentarem, o salário médio do operário português não chegava a satisfazer três quartos das necessidades alimentares da sua família. O governante português concluiu que o equilíbrio orçamental do trabalhador português era feito «à custa de uma alimentação deficiente» e «à custa do trabalho dos outros membros da família além do chefe». De notar que, em 1943, enquanto o salário médio da maioria dos trabalhadores fabris portugueses era de pouco mais de 15$00 (entre 1941 e 46, a média era 17$00, in «Salários diários nominais dos operários», Fernando Rosas, Portugal entre a Paz e a Guerra, 1990, p. 350), a organização judaica Joint concedia um apoio diário para alimentação no mesmo valor a cada refugiado judeu chegado a Lisboa.

 

 

Outro elemento do regime, o engenheiro Daniel Barbosa fez um estudo, em 1944 que apresentou, com o título «Bases para o estabelecimento dos salários industriais em Portugal», no II Congresso da União Nacional e, em 1949, quando era ministro da Economia, definiu o que deveria ser a «ementa-tipo» de uma família, constituída por um operário, mulher e três filhos, entre os 11 e 17 anos, para viver «fisiologicamente satisfeita», embora com «ração modesta». Calculou depois o custo dessa dieta, bem como as despesas essenciais, pondo de parte a assistência médica e concluiu que, para o ano de 1938, era «estritamente» necessário para a dita família «viver com decência e na maior modéstia» um salário mensal de 1.080$00 (42$00 por dia, dos quais 43% para alimentação). Segundo a sua projecção, em 1943, o salário mensal deveria ser de 1.650$00 (64$30 de salário diário, do qual 28$09) para despesas diárias de alimentação (Rosas, op. cit., pp. 356-357).

 

No Inquérito à Habitação Rural, dirigido por Lima Basto, com Henrique de Batros (vol. I, de 1944), os rendimentos anuais das classes rurais mais abastadas somavam menos de 1740$00 mensais, ficando-se os da «camada C» (semiproletários) pelos 216$00 mensais. No conjunto dos mais pobres e mais numerosos – os “isolados” (grupo B) e os semiproletários (grupo C) -, a percentagem da alimentação excedia os 80%. Na mesma região – para não se ficar só pelos número -, as casas dos camponeses menos pobres eram cobertas de colmo, sem chaminé e quase sem janelas, com um andar térreo, cujo mobiliário se resumia a «uma mesa e dois oi três bancos», e um primeiro andar com uma cozinha e um «sobrado». Este constituía o dormitório colectivo da família, composto de tarimbas de madeira onde dormiam pai, mão, filhos, genros, noras e avós. «Algumas cadeiras, mesas toscas, um ou dois lavatórios nos mais abastados são toda a mobília», destinando-se estes últimos às visitas. Não havia electricidade, água canalizada ou esgotos. No caso dos mais pobres, os«cabaneiros», as casas tinham apenas um rés-do-chão e um compartimento ocupando a extensão da habitação.

 

No inquérito sobre as regiões de Alto Minho, litoral e Douro, onde o rendimento médico anual dos rurais era de 2.341$94 (195$00 mensais), o valor do património doméstico não ultrapassava os 400$00, incluindo móveis (171$00), roupa (180$00) e louça (15$00). Em Darque, havia casos em que o valor dos móveis era de 33$50 e de 2$00 ou nulo o da roupa. No Alto Minho havia em média 7,4 pessoas para 2,5 divisões. Quanto ao sul, a Habitação rural de Amareleja, de 1941, indicava que a maioria dos jornaleiros, sem trabalho certo, gastava 70% dos salários de todos os membros da família com a alimentação. Mesmo assim só consumiam 36% das gorduras indispensáveis e um número de calorias em número inferior a 28% da dieta alimentar mínima de um trabalhador (Rosas, pp. 393-394).

 

Já agora, para não ser acusada de estar a dar uma imagem «neo-realista», mais um número: a taxa de mortalidade infantil – uma das mais altas da Europa -, variou de 1939 e 1946 entre 111,3 e 148,6 por mil. A taxa de mortalidade neo-natal era em média  de 40 mortes antes do primeiro mês em cada mil crianças nascidas. A idade média de morte era para os homens entre 36 e 39 anos e para as mulheres entre 41 e 44 anos (Rosas, p. 359).

 

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