O Apocalipse é já amanhã (mas hoje há mais do que conquilhas)
Nunca como hoje se discutiu tanto e tão profundamente os problemas do país. Por vezes, demasiadas vezes, mais em extensão que em profundidade, é certo. Ensino, saúde, justiça, segurança, etc. O recente caso EPAT (escola, professora, aluna & telemóvel, perdoem-me a insistência) desencadeou a discussão generalizada e a divulgação, repetida até ao enjôo, do infeliz vídeo. A notícia do dia é a formalização de queixas judiciais, contra a aluna e contra a turma, por parte da docente. A novela soma e segue, até se esgotar o filão. Depois, o assunto cairá no esquecimento e outra notícia bombástica, alarmista, fará as primeiras páginas dos tablóides. Mas há algo que fica e que se vai sedimentando. A ideia generalizada de que isto está tudo pior, a imagem, feita de pequenos pedaços, de que o ensino em Portugal atingiu o ponto de ruptura. O Ensino, como tudo o resto. Reformas curriculares, mudanças de nome e de terminologias, mexidas em todo o sistema educativo, protestos dos professores, agora isto. Tudo cada vez pior, é o que oiço. Até parece que, por exemplo, há 20, 30 anos não havia problemas. O tanas é que não havia.
Lembro-me bem do meu Ciclo Preparatório, feito nos saudosos anos de 1977-1979. Uma escola pré-fabricada, inaugurada no ano anterior. Localizada no meio de mato, com um autocarro a funcionar de hora a hora e que era o único elo de ligação à povoação mais próxima. Um horror. Não havia biblioteca nem sala de convívio nem espaços lúdicos, chovia nos corredores, nas salas e no ginásio. Um mar de lama. Em 1977-78 houve greves de professores de mês a mês. A certa altura foram todos postos na rua. Tive 4 professoras de inglês, nesse ano. A escola fechava às 17.30, de Inverno, porque não havia iluminação nocturna. Durante metade do ano não tive Educação Visual, por este motivo. Para quem achar que estou a inventar, procure alguém que tenha frequentado a Escola Preparatória Visconde Juromenha nessa altura. Entre 1979 e 1981, ou seja, nos 7º e 8º anos, mudei para outra escola. A sede estava lotada. As aulas decorriam numa quinta cedida, já degradada, sem o mínimo de condições para o efeito. Não havia ginásio, os alunos tinham Educação Física numa sala grande, a sala de aulas servia de vestiário. Balneário? Ora. Turmas de 30 e muitos alunos. Não havia refeitório nem guarda de portão, nem sala de convívio. Hoje a quinta é a sede da Segurança Social de Sintra. Toda uma geração apanhou um célebre professor de educação física que apalpava as raparigas, sobretudo quando media a "pulsação". Para os rapazes era simplesmente bruto e arrogante. Estes assuntos não chegavam nunca à imprensa. O país estava muito ocupado com outros problemas. A imagem da Educação era anual, quando invariavelmente o Ministro ia à televisão, em Outubro, anunciar o sucesso da abertura de mais um ano escolar. Lembro-me particularmente da figura patética e da voz ridícula de José Augusto Seabra. Se os meus filhos fossem confrontados com condições destas, hoje, eu acharia que estava tudo pior ou, no mínimo, na mesma. O que se passa na Educação ocorre igualmente noutros sectores. Há 30 anos o SNS funcionava melhor? Quem se lembrar do que era ir à urgência do Hospital S. José talvez ache o contrário. Hoje, as estatísticas revelam que Portugal tem uma invejável taxa de mortalidade infantil. Há uma reforma do sector da saúde em curso. Aberta e amplamente debatida. Mas a imagem que fica é a da degradação do Serviço Nacional de Saúde, dos protestos populares contra o encerramento de maternidades, de mais uma criança que nasceu numa ambulância. Os dados mostram que os índices de segurança não pioraram, mas basta uma actriz ser assaltada em plena CREL para lá vir o coro de temores exigindo mais polícia nas ruas e denunciando o aumento generalizado da criminalidade. Isto está tudo cada vez pior. E quanto à Justiça, alguém se lembra de intervenções públicas do Ministério Público, do Bastionário da Ordem dos Advogados ou do Provedor de Justiça há 20 anos? Alguém falava de tribunais sobrelotados? Eu, confesso, não me lembro. Portugal é um país de memória curta. Que vive muito por ondas e vagas, consoante as primeiras páginas do Correio da Manhã. E a percepção geral das pessoas é a de que está tudo pior. Ninguém percebe que os problemas estão simplesmente mais visíveis e expostos, que se discutem questões práticas, muitas e variadas, quando há 30 anos eram as temáticas ideológicas e políticas que mereciam todo o destaque. O país, esse, viveria sem problemas? Os que existiam e que mereciam destaque eram restos do fascismo ou do PREC, consoante a perspectiva. Hoje, a generalização dos debates e das discussões, a denúncia dos casos gritantes de injustiça, de pobreza, de ineficácia, a pluralidade de opiniões, de blogues, de canais de televisão, de fóruns, que constituem simplesmente efeitos e benesses de uma democracia consolidada e estável, não produzem o efeito desejado. Tudo o que nos deveria levar ao esclarecimento e à informação, ao confronto de ideias e à abertura de soluções, à análise e à compreensão para melhor se detectarem e resolverem problemas, produz o efeito contrário. O clima pessimista espalha-se porque as pessoas vêem-se mergulhadas num turbilhão de incertezas que parecem anunciar o Apocalipse. Sentenças emanadas de fóruns respeitáveis (como a recente posição da SEDES) sobre o colapso da democracia consolidam e cristalizam este sentimento. Este país está perdido. Lá vêm as culpas para a ministra ou para o sistema. Só, lá de vez em quando, aparece um período de tréguas: quando a selecção obtém um sucesso num campeonato. Depois, este país orgulhoso da sua portugalidade arruma as bandeiras verde-rubras e regressa à rotina. Não sei se é algo genético da alma lusa. Mas que está bem incrustado, está.

