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os euromamelucos

Eram tempos difíceis para Qansawh (ou Qansuh) al-Ghuri. Estava realmente num beco sem saída e o próprio adivinhava, talvez, que seria o último sultão mameluco do Egito. Apanhado no fogo cruzado entre os turcos otomanos em expansão e o jovem e impetuoso Ismail do Irão, o sultão vira-se subitamente confrontado com uma nova e terrível ameaça que lhe minava os rendimentos e a sobrevivência do seu estado: os cristãos haviam chegado ao Mar Arábico e não só abasteciam-se diretamente das mercadorias que tradicionalmente passavam pelo seu reino (e que ele taxava) rumo à Europa, fazendo um bypass a todos os títulos perigoso, como atacavam impiedosamente toda a navegação que se dirigia ao Mar Vermelho. O volume de mercadorias que dava entrada nos seus portos caiu a pique e, com ele, os respetivos impostos. Os seus parceiros de Veneza, tão alarmados quanto ele, instavam-no a resolver rapidamente o problema, pela via diplomática ou militar, ou seria a ruína total para ambos. Qansawh al-Ghuri escreveu ao Papa ameaçando destruir os lugares santos da Cristandade se os portugueses não cessassem a sua ofensiva e tentou, mediante a construção apressada de uma frota, expulsar os intrusos. Tudo isto falhou e o sultão encontrou a morte no campo de batalha, ao tentar suster a ofensiva turca. O Egito foi então incorporado no Império Otomano, ocupação que durou quase quatro séculos.

Quando me ensinaram estas matérias - evidentemente não sob o ponto de vista egípcio, mas português - , uma das explicações dadas para o rápido declínio mameluco foi a de que o sultão e os seus conselheiros, para além de politicamente inábeis e militarmente enfraquecidos, teriam lançado uma ruinosa política fiscal para enfrentar a crise: perante a quebra dos fluxos de mercadorias, aumentaram brutalmente as taxas alfandegárias para tentar suprir as baixas, imaginando assim que deste modo conseguiriam obter receitas para fazer frente ao aflitivo aumento das despesas: um exército mal pago, uma administração paralisada, uma sociedade à beira do motim. Evidentemente, quanto mais esta cura era aplicada, pior o efeito.

Esta história parece estar mal contada - eu, pelo menos, nunca a consegui confirmar. Mas nesse longínquo ano de 1988, fez furor na sala: qualquer aluno - e éramos todos putos e garinas verdinhos - viu que se tratava do maior erro que se podia imaginar, embora fossemos todos de história e sem veleidades de conhecimentos em teoria económica. Coisa de outros tempos, de gente bárbara, de um rei déspota e odiado pelos seus súbditos, certamente. Nunca me esqueci desta historieta. Mas estava longe de imaginar que mais de 20 anos depois, em pleno século XXI e no coração de uma Europa já livre de séculos de guerra, do pesadelo nuclear e das ameaças totalitárias (coisa que na altura se pressentia mas ainda ninguém se atrevia a sonhar), se tornasse realidade. E que governantes eleitos e sufragados com o beneplácito da população se dedicassem alegremente, gradualmente, país a país e com aquele ar sério de quem está a aplicar a única solução possível, a executar as tontas políticas de Qansawh al-Ghuri, as tais de que um certo dia causaram riso e desdém numa sala de aula.

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