o salvador da pátria
A frase do dia (de ontem), do primeiro-ministro ("Se algum dia tiver de perder umas eleições em Portugal para salvar o país, como se diz, que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal"), é todo um compêndio de inabilidade e desorientação política. Um governante que vai a banhos no fim da sessão legislativa revela, em contraste com o habitual discurso de segurança e firmeza, uma inquietante dúvida: afinal, se calhar, os interesses de Portugal não têm nada a ver com este governo, porque a hipótese de perder eleições já está em cima da mesa. Embora Passos Coelho possa achar que lhe fica bem fazer tiradas destas, sabendo que a imprensa irá reproduzi-la, está enganado, porque funciona bem só à superfície e para alguns leitores do Correio da Manhã (como se diz agora? soundbyte?). Na realidade, ratando um bocadinho o verniz, percebe-se o que está por baixo. Aqui ficam algumas observações, uma espécie de cartilha elementar para o nosso primeiro-ministro salva-vidas.
1. Muito interessante como um chefe de governo sente a necessidade de dizer uma banalidade destas; numa democracia saudável não deveria, nunca, ser necessário relembrar publicamente algo de tão elementar e óbvio.
2. Passos Coelho, se conhecesse algo da realpolitik ou, talvez, se não tivesse o eleitorado em tão baixa conta, nunca faria tal trapaça. Como toda a gente sabe, os partidos funcionam para exercer o poder (ou o pote, em PSDês), este obtém-se em eleições, e estas catapultam para a ribalta ou escorraçam para a sarjeta que vence e quem perde. O PSD é um partido de poder em Portugal. Passos Coelho é o seu líder. A pirâmide funciona se for bem sucedida eleitoralmente; caso contrário, aqueles que o incensam serão os primeiros a puxar-lhe o tapete.
3. Mas disse-o. Um político mais perspicaz e arguto preferiria algo como "os interesses nacionais estão acima dos interesses eleitorais de qualquer partido", relembrando que toda a política, todos os homens a ela ligada, todos os interesses partidários (não só os dele, mas os de todos) e setoriais estão necessariamente sujeitos ao interesse geral. Em vez disso, preferiu usar o tom dramático de salvador da pátria e falar em "salvar o país". Passos Coelho perde eleições, Passos Coelho salva, Passos Coelho enfia o barrete.
4. Salvar o país? mas, mas... ele não estava já salvo, desde junho do ano passado, quando a escumalha e a bandalheira socialistas foram esconjuradas pelo eleitorado e Portugal tomou finalmente o rumo certo, em episódio de drama faduncho, sob a liderança - finalmente - de gente honesta, digna, competente e determinada, a tal que não tinha pressa nenhuma em ir ao pote? ou houve desvios à rota salvadora? Sim, porque a tripulação é a mesma. Cadê o homem do leme (=líder do PSD, em PSDês, desde a década de 80)?
5. Um líder respeitado e seguro tem a habilidade de conseguir fazer alinhar os interesses do seu partido com os nacionais. E, sobretudo, de prová-lo e de mostrá-lo. No fim de contas, o seu partido deveria ser a melhor escolha para resolver os problemas de Portugal (é por isso que existem vários, relembre-se). A derrota do meu partido é uma derrota nacional. Não é? Fazer divergir deste modo as duas coisas é pateta e desastrado.
6. Perplexidade: dizer isto nesta altura? num jantar do seu próprio grupo parlamentar? Não deveria ser um momento de cerrar fileiras? em vez disso, saem declarações falsamente heróicas, de novela, sabendo perfeitamente que quem o estava a ouvir terá certamente pensado, enquanto aplaudia, "fala por ti, pá, põe-te cá com merdas que vais ver".
7. Em conclusão, das duas, uma: ou Passos Coelho já está à procura de voluntários para dar à bomba para tirar a água do porão, ou não acredita nos valores do seu partido e na justeza da sua ação como governante. Como estamos todos no mesmo barco, não sei bem qual é pior.


