E agora, desiste-se?
A reforma da saúde de 1971, o 25 de Abril e a Constituição de 1976 foram pilares fundamentais para a criação do SNS, formalizado pela Lei 56/79, que estabelece o direito de todos os cidadãos a um sistema de saúde universal, geral e tendencialmente gratuito.
Vale a pena olhar para os dados existentes e perceber que muitas das "verdades inquestionáveis" sobre gastos, eficácia e eficiência do SNS não passam de mitos não sustentados pela realidade. Entre 1960 e 2009, a mortalidade infantil passou de 29‰ para 3‰, valor inferior à média da OCDE (4,4 ‰). Nas últimas décadas Portugal foi o país da OCDE que mais melhorou neste indicador, com uma média de redução anual de 6,8% (média da OCDE, 4,5%). Quanto à esperança média de vida, passou de 63,9 para 79,5 anos, atingido a média da OCDE.
Num estudo sobre eficiência dos sistemas de saúde, Portugal apresenta melhores indicadores de qualidade e tem menos despesa per capita que a média da OCDE, estando entre os seis países mais eficientes e em que os custos administrativos do sistema são menores em termos percentuais do custo global (abaixo dos 2%).
O crescimento da despesa em saúde não é uma singularidade portuguesa, sendo o crescimento médio anual per capita, entre 2000-2009, um dos mais baixos na OCDE (1,5% de crescimento médio anual vs. 4% de média). O país está abaixo da média em despesas de saúde per capita, quer se trate de despesa pública quer de despesa privada.
Os indicadores de saúde são públicos, sendo real a sua melhoria consistente aos longo das últimas décadas, associada a uma combinação de factores: a melhoria das condições de vida, da tecnologia e das terapêuticas e a generalização dos cuidados de saúde à população. A melhor prestação dos cuidados médicos contribuiu para esse resultado, feito à custa do investimento na formação e no desenvolvimento de um trabalho consertado multidisciplinar, assente em equipas sólidas e avaliações do desempenho. Não deixar cair o que já se conseguiu e não pactuar com a criação de um sistema de saúde de 2ª são, a par da defesa da qualidade da formação, da dignidade do trabalho e do aumento da eficácia, os fundamentos da mudança.
Outros dois aspectos que têm sido demagogicamente defendidos dizem respeito à defesa do implemento na concorrência entre público e privado como factor de poupança e do pagamento diferencial dos actos médicos na altura do acesso de acordo com os rendimentos. A ideia de que a concorrência seria mais favorável que a complementaridade assenta no mito de que os dois sectores têm os mesmos direitos e obrigações, o que é falso. A outra falsa questão determina uma perda da equidade e perverte o princípio da universalidade do serviço, estigmatizando a desigualdade: os mais ricos já pagam mais no acesso à saúde através dos impostos.
(este texto foi publicado no Diário Económico e faz parte frente-a-frente esquerda vs. direita, que o Diário Económico publicará até ao fim de Agosto. O texto "da direita", do Miguel Botelho de Moniz, pode ser lido aqui.)