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jugular

Punhetas a grilos

Era uma promessa que lhe tinha feito. Havia de escrever um livro. Chegou a pôr um alarme no telemóvel: 2ª feira, 15 horas, avisar 10 minutos antes (era um nokia): “Escrever”. Assim mesmo. “Escrever”. Como se estas coisas de escrever pudessem ser programadas. Levanta-se pela manhã, toma um duche, engole os cereais e vai à bolina no seu carro que “pelo menos é seguro” e que “já não é a primeira pessoa que me diz, e até já li num livro: tem mais 28 cavalos do que diz o livro – sabes como é que é! Questões fiscais”.
E vai asinha porque não pode chegar atrasado ao seu novo emprego de escritor. O patrão é severo. Tem prazos a cumprir. Agora é um romance. Uma história de tragédia. Dois irmãos que se apaixonam um pelo outro e são obrigados a terminar a relação quando descobrem que, afinal, não são irmãos. Depois chega a hora de almoço e à tarde tem de se embrenhar numa comédia.
Há que arranjar um herói. Pode ser o terceiro irmão dos atrás avindos – e que hão-de deixar de o ser.
Que nome lhe havemos de dar? Passa este escriba pelas mesmas agruras dos pais que lhe escolheram o nome, assim como “uma espécie de pai sem o ser”.
Martim. Pronto. Pelo menos aqui não tenho quem discorde. Martim será e pouco me importa que lhe chamem Martins. Afinal as crianças são cruéis e os adultos são medíocres. Quase todos. Não podem ser todos. O próprio conceito e o simples facto de existir, como tal o impõe. Se o oposto da mediocridade, qualquer que ele seja, como de resto tudo o que é ou não é, não existisse, ou não fosse reconhecido, a própria mediocridade não existiria.

Mas já chega de conversa fiada. Vamos às coisas sérias.

 

Falava-vos do nosso herói! Lindo! Bela tirada: “o nosso herói”. Livro que o queira ser, deste escritor de empreitada (que não sou eu, atenção, não se esqueçam da promessa), tem de ter um princípio, um meio e um fim e, mais que tudo, tem de ter um narrador – aqui posso ser eu – que possa dizer coisas como: “o nosso herói”.

Martim. Irmão do Fulano e da Beltrana – assumi o “Beltrana”. Irmã borralheira da Fulana, a preferida, e da Sicrana, irmã do meio a quem pouco falta. Não é a sério, não se esqueçam, porque irmãos são mesmo só três - recapitulando, Martim, Fulano e Beltrana. Nesta história, sempre que não se quiser nomear alguém, Beltrana será. E assim no feminino, que fica giro. E o raio do corrector ortográfico automático quer à força mudar-lhe o género. Pois que aguente. Não é Beltrano. Nesta estória não há paneleirices, se o outro é fulano, esta tem de ser Beltrana. Bem bonda o incesto que afinal não era.

O Martim, como não pode deixar de ser, é aprendiz de feiticeiro. Genericamente: bruxo – como se intitula. Num mundo de medíocres ninguém quer ser aprendiz de nada. Vamos todos fazer de conta. Fazer de conta que somos felizes. Fazer de conta que somos experimentados. Fazer de conta que temos dinheiro. Fazer de conta que não são os nossos papás que nos sustentam. Fazer de conta que nos esfalfamos a trabalhar. Sábados, Domingos e feriados. E dizer mal do vizinho que é um calão e não trabalha nos dias de descanso - deve-lhe vir da droga. Mesmo que estejamos conscientes, e alguns não fogem a esse estado, o que só lhes deve aumentar a agrura, mesmo que estejamos conscientes que não fazemos a ponta de um corno, que é só para inglês ver e, pior que tudo, que somos, na maior parte das vezes, o nosso próprio inglês. O que interessa é que o nosso vulto apareça na fotografia, que os movimentos mecânicos do trabalho se possam vislumbrar. Mesmo que o produto de toda essa presença no local da ilusória faina não passe dum enorme flato, dado bem alto e ao vento para que ninguém possa ouvir nem cheirar.
Mesmo assim. Como num enorme auto de fé de bruxas vaidosas. E um bruxo não dorme, um bruxo não come, um bruxo não bebe, um bruxo não fode. Pois bem, este aprendiz de feiticeiro faz isso tudo e mais uma botas que sejam precisas para algum pobre ucraniano que por ai ande de pata ao léu.
E lá vai então o Martim para o escritório. Chegou. As estórias misturam-se, a do criador e da criatura. Está quase a tocar o alarme das 10 para as 10. Ele espera, pacientemente. Escrever. Tá bem, tá. Escreve tu que tens bom vagar. Eu tenho muito com que me entreter - afinal, sou o vosso herói, o protagonista desta história. Embora não me desagrade de todo a ideia de tão tonta corrente literária, não gabo a sorte de quem a quiser aproveitar. Demasiado trabalhoso e, tecnicamente, não passa de uma bela dor de cabeça. Ah, e não vende.

Tocou o alarme, toca a escrever.
“Era uma vez um cabrito montês”

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