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Cristóvão Bond e os Bokors nacionais

Bokors in the religion of vodou are sorcerers or houngan (priests) for hire (…), meaning that they can practice both dark magic and benevolent magic. Their black magic includes the creation of zombies (…). (da Wikipedia) 

De vez em quando, o zombie-Colombo Português é ressuscitado por algum feiticeiro nacional. A história é velha de barbas brancas, mas de cada vez que há uma crise do orgulho nacional, alguém encarrega-se de o trazer novamente à baila. E como é algo que mexe com os brios cá da terra, tem sempre audiência, livros vendidos e holofotes apontados. A última vez fora em plena euforia do oásis cavaquista, com o pitoresco Mascarenhas Barreto. Se alguém quiser ler a delirante entrevista que deu a Pedro Ayres Magalhães (que pela imparcialidade demonstrada se percebe porque é que faz música e, felizmente, nunca se dedicou ao jornalismo) à Kapa, em 1991, é algo que aconselho vivamente. A coisa deu algum barulho e, até, debates na televisão. Infelizes, porque não é possível desmontar, perante o apertado ritmo do directo, os disparates de quem se apresenta como defensor de Portugal, que puxa pelo orgulho nacional e dispara teorias da conspiração que nos enchem o ego. Alfredo Pinheiro Marques fê-lo e fez figura de "académico" e de "intelectual", rótulo imperdoável neste país. A coisa morreu de morte natural. R.I.P., pensámos todos. O zombie acaba de regressar, uma vez mais, da tumba.

Desta vez são outros autores a requentar velhas balelas mas que contam com importantes cumplicidades, ainda que cientificamente nulas, como José Rodrigues dos Santos e o seu Codex ou Manoel de Oliveira e o seu último filme. O Público de hoje, na página 14 da ed. impressa, aplica mais um balão de oxigénio ao morto-vivo, sob o título "Cristóvão Colombo era português, e de Cuba?". Lá vêm novamente as ideias estafadas das contradições e das omissões das fontes, do pintelho e da cagadela da mosca. Desta vez não há propostas de decifrar siglas cabalísticas. Mas a ideia-chave permanece: Colombo era agente de D. João II e agiu a mando deste para afastar as atenções dos castelhanos da Índia, mandando-os no sentido oposto. O pormenor de Cuba, ou seja, que o navegador seria originário da vila alentejana e que teria dado o nome da ilha à sua terra natal é enternecedor, não fosse o facto de a mesma ter sido baptizada de "Juana" (em homenagem à filha dos Reis Católicos) e o nome da ilha ter, na realidade, uma origem local. Sim, porque havia gente a viver na ilha, possuía uma língua e tudo, não sabiam? Para conceder a "chancela" (e desde que vi o Herman José a falar disto, não deixo de me rir com o termo), lá estão as declarações de Veríssimo Serrão. O mérito e o valor do decano da historiografia portuguesa não pode ser contestado, mas as suas ideias nacionalistas são bem conhecidas. Podiam ter pedido a opinião a outro, por exemplo, a Luís Adão da Fonseca, mas a mais que provável resposta estragava-lhes o retrato. Não quero aqui debater argumentos, aliás sem novidade (remeto, por exemplo, para as "Dúvidas e certezas na história dos Descobrimentos Portugueses", de Luís de Albuquerque). Mas constato como a "História" que interessa aos media, que faz vender papel e espevita o público é a historieta romântica de personagens, sobretudo se houver uma conspiração, um enredo e um final feliz. E onde os "bons" e os "espertos" são os portugueses. Como nos filmes. E que nos faz esquecer que há 10% de pobres em Portugal, que a gasolina não pára de aumentar e que a sempre anunciada "saída da crise" conheceu nova prorrogação. No caso presente, se se confirmasse, sem margem para dúvidas, que o famigerado Colombo sempre era português, seria uma verdade não merecedora do que mais que uma nota de rodapé ou, no máximo, um folheto. Em vez disso, é uma hipótese menor que se presta à escrita de grossos volumes. Na verdade, é perfeitamente irrelevante se era português, castelhano, italiano, moldavo ou cazaque. Isto porque a "nacionalidade" não era no século XV o que é hoje (melhor dizendo, no século XX). Não faltam exemplos de portugueses ao serviço de Castela, de que Magalhães é o caso mais célebre. Porém, o que motiva os bokors nacionais é a intriga oculta do semi-deus omnisciente D. João II e dos beatos papalvos Reis Católicos. Bem papados que foram, hein? Bom, cada um acredita no que quer. A realidade histórica é outra. A ideia de que os castelhanos poderiam perturbar o processo de descoberta do caminho marítimo para a Índia é falsa. Não havia tensão entre Portugal e Castela que pudesse levar a tal interferência. O Tratado de Alcáçovas-Toledo acabara com a guerra, resolvera as questões pendentes e firmara uma aliança, selada com a promessa de casamento dos respectivos príncipes. Os Reis Católicos tinham outras preocupações, à data: sarar as feridas de um país dilacerado por uma guerra civil, apaziguar uma nobreza indisciplinada, uniformizar do ponto de vista administrativo, fiscal, religioso e ideológico o espaço nacional, terminar o processo de conquista territorial peninsular.  Mas vamos ao que interessa. Se Bond-Colombo era agente português, prestou um lamentável serviço à Pátria. Deixem-no lá estar italiano, sff. Porque era, de facto, um nabo. Com nabos italianos podemos nós bem e este país já tem essa espécie em número suficiente. Em primeiro lugar, porque deveria ter navegado a norte da latitude das Canárias, cujo espaço estava atribuído a Castela pelo Tratado. E a latitude era uma coisa fácil de medir. Bastava o Norte da actual Florida. Tendo chegado às Antilhas, entrou em território reservado a Portugal, o que suscitou de imediato uma crise entre as duas coroas (que veio a ser resolvida em Tordesilhas). Ora, Portugal e Castela haviam saído de uma guerra. Seria patriótico causar outra? Em segundo lugar, D. João II não era omnisciente, mas também não era idiota. A esfericidade da Terra não estava comprovada, mas era a tese mais aceite na época. Mandar o seu agente para ocidente era um tiro no escuro. E se houvesse de facto uma passagem ou não houvesse continente americano nenhum? Teria os castelhanos no Japão e na China antes do final do século. Bela estratégia, de facto. Por fim, mesmo se admitirmos a omnisciência geográfica joanina, Colombo levou os conquistadores direitinhos a um vasto continente, rico em ouro e prata, que garantiu a Castela um império colonial durante 400 anos. Os Reis Católicos, esses otários, lançaram as sementes de um estado moderno, eficiente, altamente organizado e burocratizado, que viria a transformar um país pobre e dividido na maior potência europeia durante mais de um século. Em que nós participámos durante seis décadas. Mas isso é outra história. A que não merece os escaparates das livrarias nem a luz da ribalta e que por cá continuamos a preferir designar por "domínio espanhol" ou "perda da independência".

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