p'amor de Deus, que ninguém proteste
Há coisas que as pessoas parecem não entender. Uma delas é que ninguém no governo quer saber se a austeridade incomoda, se faz cócegas à população ou se a esmaga com impostos. Entendamo-nos: para o governo, não importa. Vítor Gaspar não está ali para fazer de Santa Casa da Misericórdia. Está ali para aplicar uma receita que aprendeu nas universidades, e fá-lo-á enquanto estiver mandatado para isso. No dia em que o seu superior o mandar embora, pegará nos papéis e regressará ao Banco de Portugal ou a outra instituição qualquer, de preferência além-fronteiras. Com sorte, este Salarazinho do século XXI irá fazer experiências num outro país mais tranquilo e sem a maçada da opinião pública e dos media sempre a massacrar.
Até lá, irá prosseguir, rapidamente e em força, a execução da sua cartilha. E como deve ser um homem temente a Deus, inculca uma adenda de penitência a cada revés; para os outros, claro, não para ele, porque o país inteiro é que está errado, ele, nunca. Os portugueses são teimosos, mas hão-de aprender. Primeiro foi o aumento na TSU. Levantou-se o clamor que se sabe. O ministro das Finanças recuou e pensou: "ah é? tudo bem, não sou esquisito". Então, toca de encontrar uma alternativa fiscal, mais pesada, evidentemente, porque todo o trabalho anterior foi perdido. Percebeu que Portugal é um país de proprietários. "Ora bem". Zumba no IMI. Mas alguém lhe soprou ao ouvido que ia ser insustentável e já se anunciava nova vaga de protestos. Que maçada, mais uns quantos serões para o galheiro, mais umas papadas nos olhos. "Ok, sou como o Jacinto, venha o branco ou o tinto". Ora, não há nada como receitas simples, mezinhas da avó, back to the basics. Lembrou-se até de uma história qualquer de uma navalha de um tal Occam, que viu num filme. Então, lá vai disto: IRS é que é, qual TSU qual IMI, isso são voltas desnecessárias. É ali, no dinheirinho vivo que as pessoas recebem todos os meses, é que está a solução. Lá veio a tesoura, desbasta daqui, corta dali. Já está. E para que não restem dúvidas de que isto não é a brincar, dá-se já uma margem jeitosa de uns milhares de milhões a mais, porque Portugal é um país muito sujeito a derrapagens. E é para aprenderem. Finalmente, temos um político com uma dimensão moral.
Se a população se insurgir novamente, o Cavácuo gaguejar mais umas quantas patacoadas, o Bagão se acorrentar às portas de S. Bento com a mensagem "I Want My IRS" e Manuela Ferreira Leite rapar o cabelo e retirar-se para o convento das carmelitas descalças em sinal de nojo, o patrãozinho Coelho é capaz de vacilar outra vez. Temo, porém, que a revanche seja ainda pior, porque o tempo escasseia: prevejo o confisco das contas bancárias, a requisição dos salários, a penhora de bens (nomeadamente a quem seja rico e viva, portanto, num apartamento superior a um T0), o assalto às caixas de esmolas dos sem-abrigo e dos mendigos e o apresamento dos lanches que as crianças levam para a escola.
Por isso, faço aqui um apelo: ninguém diga mais nada, desconvoquem os protestos e as marchas, acabem lá com isso e voltem ao trabalho, cambada de madraços, cada hora que perdem são mais uns euros que ficam a dever, penitenciem-se, mas é, dos tempos em que andaram a viver acima das vossas possibilidades, jejuem e peçam perdão. O nosso Salazar não recuará nunca. Não perceberam ainda? P'amor de Deus.

