"A alegoria do cinema" por Vasco Barreto
Quem leu o Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, ainda se lembra do relato de uma sociedade em colapso por causa de uma epidemia de cegueira branca. O filme baseado no livro estreou nos EUA na passada sexta-feira sob fogo cerrado da Federação de Cegos americana, que o caracterizou como “deplorável e revoltante”, por reforçar os estereótipos negativos acerca dos cegos. “A cegueira não transforma pessoas normais em monstros”, disseram. Perante esta reacção, felicito a posteriori a Associação Portuguesa de Geólogos por não ter protestado aquando da publicação de A Jangada de Pedra, livro em que a deriva de uma Península Ibérica destacada da Europa é uma “deplorável e revoltante” caricatura do modelo da Tectónica de Placas. Este caso não é um cúmulo do politicamente correcto, nem sequer uma tentativa de censura por incapacidade de transcender a interpretação literal. Admitindo que o filme é fiel ao livro (foi apadrinhado por Saramago), a sua interpretação literal não é a de que a cegueira transforma os homens em monstros, mas sim a de que estamos sempre a um fechar de olhos de nos tornarmos bestas. Mais: diz-nos que aqueles que são brutalmente mantidos num manicómio por terem cegado ou correrem esse risco não perderam a capacidade de praticar o mal. É difícil imaginar uma obra menos discriminatória para com os cegos, porque ao negar-lhes uma redenção vitalícia pela perda da visão afirma que uma incapacidade física não belisca o essencial da condição humana.
O politicamente correcto pressupõe uma colagem à realidade, mas não a recria. Os protestos nos EUA de associações de deficientes pelo uso do termo “atrasadinho” na comédia recente Tempestade Tropical são disso exemplo. Podemos pender para um ou outro lado, mas há um mínimo de entendimento comum sobre o objecto da discórdia. O caso presente é de uma outra natureza, porque assistimos à subversão da própria realidade. A cena em que um cego se insurge veementemente contra um filme tem algo de absurdo, mas também lembra um mito famoso. Penso num cego a entrar na sala de cinema acompanhado por alguém que depois lhe vai relatando o filme ao ouvido. Tais palavras são as sombras projectadas nas paredes da caverna onde viviam os prisioneiros que Platão imaginou, representações imperfeitas. Que solução tem o cego para se aproximar de uma reconstrução fidedigna do filme? Ir mais vezes ao cinema, mas variando a companhia, para construir um olhar a partir do olhar dos outros. É também o que nos resta fazer, de forma um pouco menos literal – e seguramente o que tento para entender a crise económica, a música de Stockhausen, a popularidade de Mafalda Veiga, as mulheres em sentido lato e tudo o que saia da minha minúscula esfera de conhecimento. Não nos livramos de poder ficar uns monstros, vamos apenas evitando algumas monstruosidades. Crónica do Vasco no Metro de hoje. Sobre o tema o autor sugere que se leiam os posts de Daniel Oliveira e de Pedro Picoito.

