Falhar compensa
Após mais uma revisão da programa de ajustamento, a pergunta que o país faz, para lá de qualquer (auto-)avaliação da troika, é se isto está a funcionar. Qualquer resposta é pouco útil se não pensarmos um pouco no que "funcionar" - ou "falhar" - significa.
Deixemos de lado a definição minimalista de que um programa de ajustamento tem sucesso enquanto os credores continuarem a receber o seu dinheiro. Para o país que é alvo do programa de ajustamento, "funcionar" é, como vimos este ano, alvo de uma definição dinâmica: em 2011, a meta do défice orçamental era sacrossanta; como a execução de 2012 foi (previsivelmente) desastrosa, a redução acelerada do défice externo passou a ser o grande sinal de sucesso.
Mas há um ponto mais fundamental nesta problematização de "sucesso". Um programa de ajustamento como este contempla um risco moral altíssimo, e tem na sua essência incentivos objetivos (repito: objetivos; não estou a falar da putativa perversidade individual de qualquer governante) para falhar, uma vez que falhar no momento t abre margem de manobra para radicalizar as medidas em t+1, talvez as mesmas que o pudor político (a que um ministro está obrigado, mas um assessor do governo não) impediu de defender e implementar em t.
Coloquemo-nos na posição de quem tem um programa político liberal radical para implementar. Daqui decorre que:
(i) as metas nominais interessam pouco. O que é fundamental é a concretização convicta e continuada da estratégia (por isso é que o impacto da concessão da ANA no défice de 2012 não interessa, mesmo que a possível não autorização pelo Eurostat leve ao incumprimento da meta do défice acordada). Uma vez que o programa é profundamente político, a hipótese de que a realidade possa funcionar como demonstração de que a estratégia não funciona está fora de causa. Se alguém tem dúvidas, só tem que esperar pelo "longo prazo" (que não é uma meta temporal, mas o momento em que as medidas trarão os efeitos pretendidos).
(ii) os aparentes falhanços são, na realidade, grandes oportunidades:
- o desemprego explodiu? É dramático. Mas é também uma oportunidade fantástica para impor uma mais arrojada liberalização do mercado de trabalho (coisa que ninguém teria coragem de impor logo de início), porque a "realidade" mostra, afinal, que o mercado ainda não é flexível o suficiente.
- a receita fiscal afundou? É uma pena. Mas é também uma oportunidade imperdível para cortar a sério na administração pública, porque sem impostos não há como financiar as funções do Estado.
- o PIB caiu mais do que o previsto? É negativo. Mas tal é a prova de que é imperativo acelerar e aprofundar as reformas estruturais para "libertar" a economia e desmantelar os vested interests.
Falhar só não compensaria se, por exemplo, um erro clamoroso nas previsões do desemprego obrigasse a um recuo na estratégia desenhada, com tradução em medidas fundamentais (e não ao refúgio em medidas compensatórias que cumprem o mesmo objetivo: por exemplo, as políticas ativas de emprego de pouco mais servem hoje do que obrigar a economia a baixar salários).
É por isso que, num certo sentido - e não pretendo ser cínico -, o plano está a correr bem. Aliás, melhor do que há um ano qualquer liberal podia pensar. Repare-se neste exemplo: enquanto o memorando prevê uma redução moderada de 2% de trabalhadores da Administração Pública por ano até 2014, é provável que, a manter-se o ritmo de saída de efetivos, entre 2011 e 2013 o Estado tenha sofrido, por alto, uma redução aproximada de 20%. E, atenção, não estou a contar com medidas que não estão ainda (oficialmente) previstas e que podem ser adicionadas ao OE2013 durante o próximo ano, no quadro do "plano de contingência" ou do debate da "refundação" do Estado - tudo pérolas que o memorando inicial não previa.
No fundo, a direita está a implementar um programa bem próximo daquele que teria negociado se estivesse no poder em abril de 2011. Não há problema que falhe metas e previsões. Falhar compensa.

