Para reformar é preciso mais do que fazer rácios
Enquanto o país assiste à incompetência quotidiana do Primeiro Ministro expressa nas suas declarações em torno de um corte desesperado de 4 mil milhões de euros da reforma das funções sociais do Estado - agora é a educação, depois será outra área -, vale a pena deixar aqui uma nota de preocupação em relação ao que intervenções de Selassie e Gaspar, em momentos diferentes, já deram a entender sobre a justificação para a "reforma" da educação.
A ideia é de que, como se observa comparando médias internacionais de inputs – despesa pública, rácio professor/ aluno, etc. - e de outputs – alunos diplomados, abandono escolar, etc.. - a educação pública é cara e pouco eficiente em Portugal. O raciocínio é tudo menos novo, mas no momento em que se procura desesperadamente cortar reformar o Estado, o uso desta lógica para justificar os cortes é bastante perigoso.
Na verdade, é tudo tão fácil. Não é preciso saber nada de educação para comparar médias, fazer uns rácios, e chegar à conclusão que um sistema underperforms em função àquilo que era "esperado". Existe alguma "coisa" entre o input e o output que explique como funciona o sistema? Talvez exista, mas tal é tratado como uma "caixa negra" que, por dar trabalho abrir, é melhor ignorar. Trate-se de constrangimentos que impendem sobre famílias, escolas, professores, etc., tudo pode ser visto com particular indiferença.
O problema é que não pode. Por exemplo, não é possível medir a eficiência da despesa pública e a eficácia de um sistema ignorando o nível económico, social e educacional de partida das famílias. Façamos o seguinte exercício: imaginemos dois países, A e B, que gastam precisamente o mesmo em % do PIB em educação não-superior. No país A, as crianças entraram na creche ao fim do primeiro ano de vida e já praticamente sabem ler quando entram no ensino básico aos 6 anos; em 4/5 das famílias, pelo menos um membro tem um curso do ensino superior, e a respetiva casa tem pelo menos 500 livros espalhados pelas diferentes divisórias. No país B, a esmagadora maioria das crianças não frequentou o pré-escolar, e termina o primeiro ano do ensino primário com sérias dificuldades de leitura; em apenas 4/5 das famílias há um membro tem um nível de escolaridade superor ao 9.º ano, e livros é algo que nenhuma criança está habituada a ver em casa.
Não é preciso grande expêriencia ou conhecimento para saber que é muito mais difícil ensinar no país B do que no país A. A e B são países imaginários, mas Portugal está mais próximo do país do B do que do A. Qualquer comparação entre a despesa pública em educação entre os dois países que ignore este contexto - que o isole numa caixa negra demasiado complicada para analisar, entre o input e o output - não é apenas idologicamente enviesada: é também incompetente.
Vejamos, por exemplo, a atenção que a OCDE revela a este problema no estudo PISA 2009. Para tal, construiu um Índice de Estatuto Económico, Social e Cultural da família dos jovens inquiridos [IEESC]. O índice é construído a partir de três outros índices: um relativo ao estatuto ocupacional da família do jovem, outro que se refere ao número de anos de escolaridade da família, e um terceiro que avalia o nível de bem-estar doméstico do agregado (por exemplo, inclui informações relativas ao número os livros que existem em casa, etc.). O quadro seguinte, retirado do Volume I do PISA 2009, indica, na sexta coluna, a percentagem de estudantes que participaram no estudo que estão abaixo do -1, que é o desvio-padrão (o valor médio é para a OCDE é zero).
Vemos que Portugal é o quarto país com mais crianças abaixo do valor -1 do índice: 33,5%. Só no México (58,2%), na Turquia (58%) e no Chile (37,7%) essa percentagem é superior.
Para que é que isto interessa? Entre outras coisas, para mostrar como os alunos cujos pais apresentam níveis económicos, educativos e/ou culturais baixos partem de uma situação muito mais difícil, e que tanto o seu esforço como o do sistema de ensino que os educa tem de ser levado em consideração para perceber a sua eficácia e qualidade.
Depois, a OCDE faz um exercício interessante: ajusta o desempenho dos estudantes na leitura ao valor que o país apresenta no IEESC. Isto é, estima qual seria o resultado de cada país se, por hipótese, todos os estudantes dos diferentes países estivessem todos no mesmo nível económico, social e cultural. Porque 1/3 dos jovens em Portugal está abaixo do nível -1, os resultados obtidos pelos estudantes portugueses são, tendo em conta as suas condições de partida, muito melhores do que a média simples (que é de 489): o resultado ajustado é de 510. Este é o sexto resultado mais elevado, atrás apenas da Finlândia (523), Nova Zelândia (514), Turquia (513), Canadá (512), Japão (512). Repito: quando ajustados às condições económicas, sociais e culturais da família dos jovens, o resultado de Portugal é o sexto mais elevado da OCDE.
Visto deste prisma, o sistema português é bastante eficaz. Podemos discutir como é feito o índice PISA, entre outras questões de cariz teórico e metodológico. O que é inegável é que avaliar os resultados de um sistema sem ter em conta a "matéria-prima" sobre a qual ele "trabalha" não é sério.
Mas há mais um erro bastante comum nesta "estratégia" apressada das comparações internacionais: é que ela apenas nos dá uma fotografia do momento actual, e não é capaz de monitorizar nem compreender a sua dinâmica mais ou menos recente.
Num país como Portugal, que parte com grandes atrasos históricos, esta questão é fundamental. Dou três exemplos:
- a dinâmica de redução de despesa que se verificou ao longo da primeira década de 2000, interrompida com o ano atípico de 2009. No ano imediatamente anterior, Portugal já gastava menos que a média da OCDE [a cor rosa (PS) e laranja (PSD-CDS) dos valores indica o(s) partido(s) no governo no ano respetivo].
- a redução de alunos que abandonaram o ensino precocemente o sistema sem terminar o ensino secundário: sim, Portugal continua acima da média europeia, mas veja-se o esforço feito nos últimos anos.
- a melhoria de resultados no PISA ao longo da década passada.
Avaliar o sistema ignorando a dinâmica da última década - de contenção de despesa e de melhorias tanto quantitativas (menos abandono precoce) como qualitativas (subida no PISA) - também não é sério.
É óbvio que, apesar do caminho percorrido, há muitas coisas a melhorar e ganhos de eficiência a obter. O que é inaceitável é o tipo de "análise" que ignora não apenas o peso da história como a complexidade do problema. Caso contrário, estamos a permitir que se avalie uma área como a educação através da medição de inputs e outputs sem que seja necessário perceber o mínimo do assunto (e se é possível utilizar este "método" rápido com a educação, porque não com toda e qualquer área? Está assim legitimado o facilitismo e a preguiça na análise de qualquer política pública).






