Governação em 'outsourcing'
Sem autoridade perante os portugueses para o apresentar em nome próprio, o Governo liderado por Passos Coelho encomendou ao FMI um relatório pretensamente técnico para legitimar a sua agenda ideológica. Estamos, como é evidente, perante um segundo resgate. Só que, desta vez, o resgatado não é o País, é o Governo.Este relatório considera que políticas sociais justas são aquelas que combatem pobreza extrema, e apenas essas. Não admira, portanto, que se encontrem tantas injustiças e desperdícios no Estado Social que efectivamente temos, pela simples razão de que o nosso Estado Social não é apenas para os pobres. É inteiramente legítimo que haja quem pense que isto tenha de ser refundado. O que já não é aceitável é distorcer o objecto em análise e proclamar que este deve ser avaliado à luz de princípios que contestam os seus fundamentos. Dizer que "20% dos rendimentos mais altos têm 33% do rendimento que é redistribuído, 20% dos rendimentos mais baixos apenas conseguem 13% do rendimento redistribuído", e que isto é injusto, é não perceber a natureza contributiva de uma parte muito significativa das nossas prestações sociais. A injustiça, que obviamente existe, reside na distribuição primária dos rendimentos, não no modo como, partindo desses rendimentos e respectivas contribuições, se chega a um conjunto de prestações sociais de natureza contributiva. Quem não percebe isto, ou não entende o sistema que está a avaliar ou está deliberadamente a distorcer a realidade. Se o objectivo for apresentar um diagnóstico do nosso Estado Social, convém ter presente que não só gastamos menos em percentagem do PIB do que a média da OCDE, como os resultados dessa despesa estão em linha com os dos nossos parceiros. A redistribuição de riqueza via transferências monetárias e impostos reduz o índice de Gini (indicador de desigualdade) em 24% - semelhante à média da OCDE, que é de 25% - e, quando olhamos para transferências associadas aos serviços públicos, essa redução é de 21%, quando a média da OCDE é 20%. Acresce que, desde 1995, a redução das desigualdades e a redução da taxa de pobreza, sobretudo a dos idosos, foi a maior da Europa.
Quando falamos em cortes inteligentes de 4 mil milhões de euros, o que se espera de um Governo que tem como missão defender os interesses dos seus cidadãos, é que tenha a preocupação de valorizar um património e um percurso que são de todos e que tanto nos deviam orgulhar. Lamentavelmente, não é o caso.
(Artigo publicado no Diário Económico)