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jugular

a escol(h)a de esther

conheço há muitos anos, de a ler, de a entrevistar e de a seguir na sua intervenção pública, esther mucznik. não concordo sempre, e talvez nos últimos anos quase nunca, com ela, mas confesso que nunca pensei ler, da sua pena, o que hoje li.

 

esther mucznik é judia. não precisava de ser judia para se indignar com a banalização da imagem de hitler que descreve na sua coluna - como eu não preciso de ser judia para me horrorizar com a perseguição dos judeus, por hitler ou antes e depois dele, como não preciso de ser negra para me horrorizar com a escravatura e a renitente discriminação dos negros, como não preciso de ser homossexual para me horrorizar com a homofobia, como não precisaria, creio, de ser mulher para me revoltar contra o machismo. basta ser humana -- no sentido de comungar da mesma natureza e me sentir nela igual a toda a gente, e só aceitar julgar os outros em função das suas acções e ideias e não da sua cor, 'pertença' étnica, orientação sexual, género. 

 

ainda assim, gostaria que aquilo que vou dizer fosse dito por um judeu. não porque hitler só tivesse perseguido judeus, mas porque perseguiu sobretudo judeus, e é essa perseguição monstruosa que mais e melhor o define.

 

como o que mais e melhor define os judeus é terem sido perseguidos em praticamente todas as eras e paragens -- continuando a sê-lo em coisas tão permanentes e simbólicas como a língua (e falo do português, por exemplo) -- criou-se a ideia, injusta e estúpida, de que os judeus são, apenas por serem judeus, obrigados a uma espécie de superioridade moral, a uma capacidace específica, muito acima da dos gentios, de distinguir o bem do mal.

 

neste texto extraordinário, esther mucznik, de uma penada, demonstra-nos como isso é injusto.

 

aqui temos uma judia, ainda por cima a perorar sobre a inadmissibilidade de banalizar o mal, a frisar que temos não só o direito mas sobretudo o dever de reagir com indignação a uma imagem 'cómica', 'normalizadora', de hitler num cartaz de uma escola, operando logo de seguida uma banalização absoluta desse símbolo ao comparar a indiferença risonha com que alguns lidam com a imagem do algoz racista e metódico de milhões de pessoas e o facto de um ex-primeiro-ministro ter sido convidado para dar uma entrevista e fazer uns comentários na tv.

 

sim: é isto mesmo. esther mucznik, a representante mais conhecida da comunidade judaica portuguesa, diz-nos que devemos indignar-nos tanto com a entrevista e os comentários televisivos de josé sócrates como com a utilização normalizadora da imagem de hitler. onde fica, no meio disto, o respeito pelos seis milhões de judeus assassinados, pelas aldeias inteiras arrasadas, pelos pogroms onde se queimaram pessoas vivas, pelas câmaras de gás? não faço ideia. 

 

'a estrada de auschwitz foi construída pelo ódio, mas o seu pavimento foi a indiferença', diz esther, citando ian kershaw. tomo a liberdade de acrescentar a estupidez. porque o ódio é acima de tudo estupidez. e porque a indiferença é acima de tudo estupidez. e porque só a estupidez permite que alguém escreva um texto destes, e o publique, sem perceber que está a exemplificar exactamente aquilo que supostamente pretendia combater. e que o facto de um jornal o dar à estampa é o exemplo perfeito da tolerância estúpida que a autora tão bem descreve: 'em nome de uma liberdade de expressão, tão instrumentalizada quanto pervertida, não se entende que sem ética nem moral esta não passa de um relativismo esvaziado de sentido. sob a cómoda e aparentemente tão tolerante expressão “cada qual é livre de dizer o que quiser” esconde-se na maior parte das vezes a indefinição ética, a recusa tacticista de tomar partido, a indiferença e a contemporização com o inadmissível.'


não, não me entendam mal; eu não defendo que esther mucznik não pudesse publicar este texto no público, ou que o público recusasse publicá-lo. é esther que o defende, ao dizer que nem tudo pode ser publicado, nem tudo pode ser dito, nem todas as pessoas podem falar. é esther que se arroga escolher entre quem pode falar, quem tem direito a existir publicamente, e aqueles a quem não reconhece esse direito. 


eu só acho que este texto, por escarnecer das vítimas de hitler, é inadmissível, revoltante, obsceno. só acho que este texto fere brutalmente a minha sensibilidade como pessoa igual às pessoas que foram tratadas pelos nazis como coisas, menos que coisas, filmadas enquanto caminhavam para a morte, obrigadas a sofrer todas as indignidades antes de serem finalmente 'terminadas'. não preciso de ser judia para me sentir judia de cada vez que vejo essas imagens, leio esses relatos, relembro a história. 


mas, até por tudo isso, porque tudo isso foi e pode sempre voltar a ser, ainda bem que este texto foi publicado: há mais na escola de esther mucznik. é bom que tenhamos disso consciência. 

 

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