Cinjamo-nos à ciência, então
Anda para aí um grande burburinho com a Maria Alves - a jornalista e escriba do Corta Fitas que ontem escreveu a deliciosa frase "Como vêem há mais jornalistas que pensam como eu, e que são lúcidos", assumindo assim a sua não lucidez - por causa dos seus escritos sobre homossexuais e homoparentalidade. Como para mim já não são novidade as alarvidades da senhora sobre as mais diferentes temáticas, encanitam-me bem mais os posts que o João Távora tem publicado, assinados pelo Abel Matos Santos como "Psicólogo Clínico e Sexologista". Que o Abel queira, enquanto cidadão, debitar a sua opinião nos locais que lho permitam é uma coisa, já que use o seu estatuto de, e cito, "Mestre Doutor e Assistente Especialista em Psicologia Clínica do HSM" (seja lá isso o que for) para fazer um exercício de legitimação é outra completamente diferente e, nesse caso, terá que jogar com as regras profissionais, académicas e, já agora, deontológicas existentes.
Disse Abel Matos Santos, em declarações à RR, que na discussão sobre adopção e co-adopção "nós temos de nos cingir à ciência". Apesar de questionar esta afirmação, ou melhor, dela discordar, façamos-lhe a vontade e cinjamo-nos, então.
No artigo de opinião que escreveu no Público da passada semana, cujo conteúdo e a forma me abstenho de comentar, pelo menos para já, tenta pincelar a coisa com umas referências "científicas" dizendo "(...) Um estudo australiano (Children in three contexts)" (...) "De acordo com um dos maiores psiquiatras americanos (Fitzgibbons)" e (...) "No estudo de 2010 (US National Longitudinal Lesbian Family Study)".
Fazendo um movimento empático vou numerar os parágrafos, parece que é do gosto do Abel Matos Santos.
1. Quanto ao "estudo australiano" é estranhíssimo que um doutorando em Psicologia, como refere ser, utilize referências de 1996 quando tem à mão bibliografia deste ano, mas pronto, as pesquisas bibliográficas não são para todos. Mais estranho ainda é o facto de utilizar um estudo publicado numa revista sem revisão por pares, com erros metodológicos importantes, nomeadamente no que diz respeito às histórias pregressas e acontecimentos de vida das crianças dos três grupos, e no qual quase todos os dados sobre o seu funcionamento se basearem em relatórios de professores, sendo o próprio autor do trabalho a assumir o enviesamento que isso pode determinar, sobretudo tendo em conta a área de estudo em questão.
2. Não sei a altura de R. Fitzgibbons, referido por ele como "um dos maiores psiquiatras americanos" - com mais de 2m conheço pelo menos três - mas sei que integra a National Association of Research and Therapy of Homosexuality (NARTH), defensora das terapêuticas de reconversão, prática "clínica" formal e deontologicamente condenada (cf, a este propósito, uma conversa antiga aqui e aqui). Perceberão, portanto, que a referência "científica" de Abel Matos Santos não mereça grande crédito desde logo porque incorre em má praxis - coisa pouca.
3. Por último escreve "No estudo de 2010 (US National Longitudinal Lesbian Family Study)". "No"? A que estudo se refere e em que contexto surge a informação de que "40% dos pares que tiveram um filho (por inseminação artificial) tinham-se separado"? Para quem advoga que nos devemos "cingir à ciência" tem obrigação de, pelo menos, saber indicar uma referência bibliográfica.
Nada disto é novo, o Abel parece insistir neste seu papel pouco digno e pouco sério, que de resto já lhe valeu uma queixa pública, apresentada por pares, junto da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É pena, a Psicologia nacional é muito melhor que isto e merece mais.