O perímetro da ignorância
Ciência! Verdadeira filha do Tempo tu és! Que alteras todas as coisas com olhos perscrutadores! Por que devoras assim o coração do poeta, abutre cujas asas são obtusas realidades? Como deveria amar-te? Ou como pode julgar-te sábia aquele a quem não deixas, em seu vagar, buscar um tesouro nos céus adornados, enquanto se eleva em intrépido vôo? Não arrebataste Diana de seu carro? Nem expulsaste as Hamadríades do bosque para buscar abrigo em alguma estrela mais feliz? Não arrancaste as Náiades das ondas, e ao Elfo a erva verde? E a mim, o sonho de verão debaixo do tamarindo? Soneto à Ciência, Edgar Allan Poe O Efeito dos Raios Palin nos Joaquins do Campo assim como o que motivou o post do João sobre Kant e o Big Bang - que devo confessar não perceber o que pretendia mas me fez ir ler de novo a recensão de Sahotra Sarkar ao já referido monte de disparates de Steve Fuller - conduziu-me numa incursão a um mundo até então nebuloso, a blogosfera dita liberal. Esta incursão deixou-me completamente às escuras sobre o que significa ser liberal em Portugal, embora tenha percebido que passa por muitas insurgências contra a «esquerda». Com raras embora honrosas excepções, parece assentar igualmente no oposto do que pensava ser liberalismo, nomeadamente no que diz respeito às liberdades individuais. Ou seja, os mesmos que se insurgem contra a «ingerência» estatal na autonomia económica negam tão enfaticamente a autonomia moral da sociedade civil que em muitos pontos não se distinguem dos «religious right» norte-americanos, inclusive no seu ressentimento contra a ciência que tornou Deus supérfluo - Ratzinger dixit.
De facto, com as excepções já referidas, a blogosfera «liberal» nacional parece ser constituída por devotos católicos, alguns raiando os limites do fanatismo, cujo «liberalismo» me pareceu decalcado da 2ª parte da primeira encíclica de Bento XVI. Só assim consigo entender a fixação liberal no Deus católico que inclui o advogar da obrigatoriedade da educação moral e religiosa católica na escola pública (embora condescendam que quem não a quiser para os filhos pode fundar escolas privadas) ou afirmações como «A procura de Deus, ou a procura da verdade, permanece, na minha opinião, o único fundamento da cultura humana». O autor desta lucubração «liberal» é o mesmo Joaquim iluminado pelos raios Palin que defendeu o ensino do criacionismo a par do ensino da evolução (que meteu metafisicamente os pés pelas mãos na explicação da sua posição). Esta reflexão «liberal» remete para uma questão interessante e que explica também a minha incompreensão do post do João (sorry). Para explicar melhor o que quero dizer recupero o livro «Sins Against Science: The Scientific Media Hoaxes of Poe, Twain, and Others» de Lynda Walsh. Neste, a autora explica que escritores como Mark Twain, Edgar Allan Poe e outros se ressentiram do facto de a ciência afastar os americanos da influência até aí absoluta de eclesiásticos, poetas e filósofos. A sua reacção ao peso cultural crescente da ciência foi uma série de guerrilhas que explorava o fascínio e confiança do público na ciência através de histórias falsas. Depois de os leitores as terem aceite como verdade, as histórias eram reveladas como embustes que pretendiam deixar no público a mensagem de que se não sabiam o suficiente de ciência para distinguir uma notícia falsa de uma verdadeira como é que poderiam ter a certeza de que os cientistas não os aldrabavam? O «Soneto à Ciência» de Poe deixa vislumbrar um pouco deste ressentimento mas esconde o fascínio que simultaneamente a ciência exercia no mestre do romance negro e que continuava a ambivalência em relação à ciência sentida por outros artistas, por exemplo William Blake. A ambivalência em relação à ciência por parte das outras culturas não foi um epifenómeno do século XIX e continua hoje em dia essencialmente em duas frentes e em outros embustes. Uma das frentes pode ser traçada a Popper, Lakatos e ao Círculo de Viena e às reacções de Kuhn e Feyerabend a uma delimitação demasiado restritiva do que é ciência pelos primeiros. Esta contra-reacção manifesta-se na influência crescente do relativismo epistémico (e consequentemente cognitivo) em certas áreas das humanidades que foi tema do livro «Imposturas Intelectuais» de Alan D. Sokal (New York University, Estados Unidos) e Jean Bricmont (Université Catholique de Louvain, Bélgica). Embora este seja um tema fascinante que gostaria de perceber melhor com o auxílio do João, retomando a blogosfera «liberal» esta pareceu-me um bastião da outra frente que se desenvolve para além d' «As Duas Culturas» - que deve o nome à conferência que Charles P. Snow, químico e romancista inglês, proferiu em Cambridge em 1959 e que mais tarde passou a livro. Esta outra frente vai ser aliás tema da Jornada «Fé e Ciência: O Avanço da Ciência e o Recuo de Deus», uma iniciativa do Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos da Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa que decorrerá nesta cidade no dia 18 de Outubro. Mas enquanto o Alfredo Dinis e outros teólogos se esforçam em conciliar o avanço da ciência com a sua fé, muitos outros embarcam numa guerra de guerrilhas que, tal como os embustes de Poe, simultaneamente se ressentem e exploram o fascínio e confiança do público na ciência agora com o objectivo de recuperar para a religião a autoridade epistémica de que gozou pré Renascença. De facto, as ditas «guerras culturais» que caracterizaram os Estados Unidos sob G. W. Bush - e se acenderam especialmente nas «guerras da evolução» que foram exportadas inclusive para o continente europeu - são na realidade as guerras contra a modernidade movida pelos que subscrevem a pia opinação do Joaquim sobre cultura. Ou seja, são essencialmente as «guerras santas» que Neil deGrasse Tyson descreveu no seu último livro, «Death by Black Hole And Other Cosmic Quandaries». Tyson, actualmente o mais conhecido astrofísico americano, reúne nesta antologia brilhantemente articulada os textos da série «Universo» publicados na revista Natural History. Dois dos textos são extraordinariamente apropriados em relação à frente onde embatem ciência e religião , «O perímetro da ignorância» e o «Holy Wars». Nestes textos, Tyson explica-nos que a ciência assenta na verificação experimental de modelos da realidade e a religião assenta na fé, que por definição dispensa qualquer tipo de comprovação, pelo que as duas abordagens ao conhecimento são completamente irreconciliáveis. O astrofísico realça que não há assim nada em comum entre religião e ciência e que a inspecção da História revela a guerra entre ambas descrita no livro «A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom», do historiador e ex-presidente da Universidade de Cornell Andrew D. White. Ciência e religião movem-se em esferas diferentes e, considerando que ao longo de boa parte da História da humanidade se tentou arduamente aproximar ambas, parece pouco provável que a conciliação alguma vez aconteça: «Grandes mentes científicas, desde Ptolomeu no século II a Isaac Newton no século XVII, investiram os seus intelectos formidáveis em tentativas para deduzir a natureza do Universo a partir de afirmações e filosofias contidas em escritos religiosos. De facto, à altura da sua morte, Newton tinha escrito mais palavras sobre Deus e religião que acerca das leis da física, tudo numa tentativa fútil de usar a cronologia bíblica para perceber e prever acontecimentos no mundo natural. Se alguma destas tentativas tivesse resultado a ciência e a religião poderiam ser hoje em dia indistinguíveis». A ideia que fiquei da blogosfera liberal é que não só muitos consideram que as liberdades individuais se devem submeter à «tradição» - lida exclusivamente como ortodoxia católica - como têm dificuldade em fazer a distinção entre ciência e religião e especialmente em aceitar o último parágrafo das «Guerras santas» de Tyson: «Eu, como Ptolomeu, sinto-me humilde face ao nosso Universo bem regulado. Quando me encontro na fronteira cósmica, quando toco as leis da física com a minha caneta ou quando contemplo o céu infinito de um observatório no topo de uma montanha, inundo-me de admiração pelo seu esplendor. Mas faço-o sabendo e aceitando que se proponho um Deus para lá desse horizonte, aquele que agracia o vale da nossa ignorância colectiva, o dia chegará em que a nossa esfera de conhecimento terá crescido tanto que eu não mais terei necessidade dessa hipótese».

