putas e vinho verde
Foi há 20 anos. Era eu um jovem aluno de mestrado e tinha acabado de ver publicado um pequeno artigo para um catálogo de uma exposição. E pago, que era coisa que ainda se usava. Por quem? Pela inefável Comissão dos Descobrimentos, recentemente criada e dirigida, à época, por aquele modelo de humildade e competência chamado Vasco Graça Moura. Não sei se os contratos blindados que enfeitaram a encomenda de uma ópera a Philip Glass, e que custaram um milhão e meio de euros deitados para o lixo, já tinham sido elaborados. Sei, sim, que os vinte contos, ou lá o que foi, que me eram devidos demoraram a pagar. Após as demoras burocráticas habituais, lá me disseram finalmente que podia "ir receber". Mas só às terças de manhã ou quintas à tarde (se não foi isto, foi parecido), que eram os dias em que se "pagava aos autores", e contra recibo, evidentemente. Lá fui, cantando e rindo e já esquecido dos meses de espera e das dúvidas sobre se pagavam ou não. Entrei orgulhoso e de peito inchado na Casa dos Bicos. Afinal, era um "autor" que tinha produzido "obra científica" sobre Descobrimentos e ia ser pago pela Comissão que, pensava eu na ingenuidade da juventude, existia para isso mesmo. Em cinco minutos, tudo se esvaiu. Começou com a funcionária a olhar para mim com ar incomodado como se eu fosse um cobrador de dívidas. E prosseguiu no ato do pagamento, algures no primeiro andar, num gabinete sem identificação. Esperei no corredor minúsculo, acompanhado de mais uns quantos caloiros nestas andanças, todos em pé - que cadeiras eram luxos exclusivos de altas individualidades - e com ar comprometido de quem ia mendigar uns trocos. Finalmente, lá chegou a minha vez. Bati e entrei a medo num gabinete com ar solene, onde um senhor com ar severo e enfadado me olhou de cima a baixo e perguntou "o que é que o senhor quer?". "Ah, vem receber, entre lá". E lá me passou um cheque, que me entregou no momento. Chatice, ter que pagar aos autores; e vêm todos ao mesmo. Olhou para mim como se o dinheiro fosse dele e o ar antipático deixava transparecer um "juizinho, aproveita que hoje estou bem disposto". Soube, mais tarde, que era militar e chefe da tesouraria da Comissão, de apelido igual a um catedrático da Faculdade de Letras que eu conhecia. Saí, enfim, aliviado, com os vinte contos na mão, mas com um travo amargo, como se tivesse acabado de espoliar os contribuintes.
A notícia do dia não difere muito disto. Não pagam porque não há dinheiro, afinal há mas falta a lei, afinal há dinheiro e lei, mas logo se verá, se calhar já não vai a tempo. Há quem diga que é simples desnorte governativo. Eu acho que é uma encenação propositada e intencional. Primeiro alguém diz que não se paga porque não há dinheiro, para que as pessoas se arrepiem com o fantasma da falência do Estado - e, claro, mandem tudo para as costas do Sócrates -. Ontem já era um problema de legislação; culpem os madraços dos deputados da oposição e outras "forças de bloqueio". Hoje, afinal, é uma questão de contradição entre o Orçamento de Estado aprovado e as decisões do Tribunal Constitucional. Não pagam, não pagam, quem sabe se pagam, ah se calhar pagam. Pois pagarão, claro que pagarão. Foi só para o susto. Com ar de grande esforço e incómodo, como se o dinheiro saísse do bolso do Rosalino ou do Passos Coelho, que têm que andar a sustentar chupistas, e apesar da cambada de inúteis que não deixa o governo governar e salvar o país, professores e funcionários públicos e outras abéculas incluídas que vão fazer greve e tudo. Tomem lá o vosso subsídio, chulos de merda mal-agradecidos, enforquem-se com ele, nem vale a pena avisar para não gastarem tudo em putas e vinho verde. Por esta escaparam, mas ficam já avisados para a próxima.

