dos números
"O número de formas úteis de montagem dos ácidos nucleicos é incrivelmente elevado. É, provavelmente, mais alto do que o número total de átomos do universo. Isto significa que o número de tipos possíveis de seres humanos é muito maior do que o número de humanos que alguma vez viveu".
Palavras de um génio da física, da ciência, da divulgação, da comunicação, que sempre admirei. Chamava-se Carl Sagan e misturava aquela ousadia de imaginar com um ceticismo a toda a prova. Não era ateu, porque não tinha provas de que Deus não exista; nem crente, pelo motivo inverso. Os números de Sagan são notas da música celestial, escutada através da ciência. Ouvi-lo e vê-lo, por exemplo, na série Cosmos, é uma lufada de espanto, de esperança e de maravilhamento. Devia ser obrigatório nas escolas, nas faculdades, nos foruns políticos, nas workshops de economia, nas reuniões secretas das células terroristas, nas igrejas e nas mesquitas, nos quartéis e nas prisões; em Davos e no Rio, em Nova York e em Pyongyang, em Teerão e em Tel Aviv. Incrível como todo um povo pensou que a única forma de sarar a humilhação de Versalhes seria o pogrom; inacreditável como uma elite governativa de um império decadente decidiu que o modo exclusivo de inverter a sua sorte seria exterminar os arménios; espantoso como um regime, um partido, um país inteiro julgou que só seria possível preservar o seu modelo social mediante o gulag; e, como ontem e hoje, tantos e tantas vezes creram e perfilham soluções, vias e respostas únicas, dicotomias simples, sim ou não, preto ou branco, nós ou eles, Deus ou o Demónio, morrer ou matar. Causam assombro os falsos becos sem saída da História. A estupidez humana não tem limites.
E, nos nossos dias, os falsos profetas que nos querem incutir soluções únicas e alegadamente inevitáveis, os sacerdotes dos números que nos conduzem para idas sem retorno, os políticos sem imaginação que nos impingem à força a destruição de vidas e sonhos, os tecnocratas do Excel que puxam os cordelinhos da fatalidade austerocrática, todos eles, todos, nunca viram nem ouviram Carl Sagan, nunca, nem uma vez. Arrogam-se de critérios da ciência (política, económica) e usam muitos números, mas apenas geram pobres peças de uma nota só; e isso, como qualquer um sabe, não é música. E as sociedade humanas, embora infinitamente menos complexas do que as espirais do DNA e do RNA, mereceriam, se não uma sinfonia celestial, pelo menos uma fuga, uma cantata, uma sonata.