crónicas de férias - epílogo
E já vem atrasado, que elas já acabaram. Mas assim encerro com um twilight post. E que é um twilight post? Um neologismo que acabei de criar e que significa "post escrito quando as férias acabam e o trabalho recomeça, que tanto dá para um lado como para o outro, também chamado de «post lusco-fusco» e para o qual se pode usar a analogia do copo meio cheio ou meio vazio". O presente, contudo, excede largamente esta mera dimensão laboral; na verdade, é também uma porta para a surrealidade, digamos que "onde o disparate acaba e o Cosmos começa". Musiquinha do Rod Serling, sff.
O cidadão entra na esquadra e dirige-se ao agente de serviço que está atrás do balcão. O átrio de atendimento está vazio, é espaçoso e uma televisãozinha emite o Academia de Polícia que passa no canal Hollywood. A situação que o leva ali é meramente burocrática, mas que acaba por retê-lo ali uma boa meia hora até conseguir obter o desejado papelinho. Logo nos primeiros instantes, percebe que há algo de errado. Entende mal o que o agente diz, há uns horríveis guinchos e urros na sala que ferem os ouvidos e causam incómodo. Dois minutos depois, já em versão "sala de espera", pergunta ao guarda como é que ali consegue trabalhar. Ele, com ar cansado, diz que, de facto, não é fácil e que, ao fim de algum tempo, a coisa faz mesmo dores de cabeça. E o que é "a coisa"? Um papagaio. A sala tem um papagaio. Como é evidente, a presença de semelhante animal num espaço de atendimento público é suscetível de causar alguns engulhos, porque, como qualquer um sabe, é bicho que não se consegue fazer calar, a menos que se lhe torça o pescoço. O cidadão imaginou de imediato uma sala cheia, telefone a tocar, intercomunicador a apitar, gente a querer ser atendida, e um escarcéu de guinchos lancinantes a acompanhar. Podiam ter escolhido uma tartaruga ou um peixinho.
Pouco depois, um outro pormenor faz franzir o sobrolho: a gaiola do papagaio estava aberta. Grande, mas aberta. Ou o bicho sofria de claustrofobia, ou algum guarda de apurado sentido de justiça e dotado de veia poética achou indigno mantê-lo preso, precisamente ali, sem advogado nem culpa formada. Portanto, o Jacó vagueia alegremente pela sala. Sai da gaiola de cabeça para baixo e vai saltitando rumo aos bancos. E aos utentes. Como é inexpressivo, não se sabe se é brincalhão, se ameaçador. Mas que tem um belo bico (de papagaio, precisamente), daqueles bem capazes de arrancar um nariz, é inegável. Ora, de cada vez que o faz - sair da gaiola, entenda-se -, o guarda pega num jornal e vai convencer gentilmente o rebelde Jacó a sair de baixo dos bancos e regressar à gaiola. Mas não deixa de comentar: "vai de jornal, que não quero ficar sem um dedo". Ora bem, não há como as palavras tranquilizadoras de um agente da autoridade. O Jacó já percebeu que tem que se submeter à lei, como qualquer cidadão. E, como bom português, tenta sempre uma escapadinha se ninguém está a ver, daquelas inofensivas, sei lá, passar semáforos limitadores de velocidade quando estão vermelhos, por exemplo. Mas quando a autoridade está presente, ai, aí não. Portanto, assim que o guarda está distraído ou sai da sala, lá vai ele a sair da gaiola e tentar conviver com os indígenas; quando regressa, ups, nem é preciso ir buscar o jornal que o obediente Jacó dirige-se de imediato ao poiso.
Metida conversa sobre o assunto, o cidadão recolhe informações interessantes: "sim, ele gosta sempre de coisas novas para roer, é preciso cuidado, sobretudo, com os sapatos". Bom, o filho da puta do bico-torto que me venha cá fazer-me cócegas aos atacadores que eu digo-lhe como é. Isto pensa-se, mas não se diz, claro. Em vez disso, sorri-se. Ora, uma sala vazia é uma coisa. Quando começa a entrar gente, passa a outra. Dez minutos depois, estão seis ou sete pessoas sentadas num dos lados da sala, o mais longe possível da criatura. Uma, em especial, parecia bem mais assustada que divertida, de cada vez que o Jacó olhava para ela e dava uns tímidos passinhos na sua direção. O cidadão, já entediado pela espera mas com uma avolumada vontade de rir, acaba por dizer-lhe "olhe, é melhor assim com ele calado, acredite". Nem mais. O papagaio, ao ouvir a voz de uma senhora, que tinha acabado de entrar, a falar com o guarda, desata aos guinchos. Os minutos seguintes são surreais. Ela (uma senhora idosa de origem africana e, possivelmente, com sotaque carregado e dificuldades de audição) diz ao guarda o que quer, ele responde com palavreado formal e burocrático, processo assim, coima assado, custas de X euros associadas à certificação, impressos e taxa judicial blá blá blá, e o grande Jacó, já quietinho e em mood Pavarotti, acompanhava a conversa com inegável interesse. Incompreensão total. O guarda acaba por dizer "minha senhora, por favor fale mais alto e mais devagar que não percebi uma única palavra" (e ela, imagino, idem aspas). O intercomunicador dele apita e ele fala, também com uns "hãs" e uns "quês" à mistura. É melhor olhar para outro lado, que fica mal uma pessoa desatar a rir-se numa esquadra.
Quando, por fim, os decibéis acalmam (e o papagaio retoma as suas deambulações), lança-se nova pergunta ao guarda: "é mascote?". A resposta não ajuda muito a manter a postura séria que se deseja, enfim: "sim, tínhamos outro nas antigas instalações, mas era velho, este é novo e nunca está quieto, como vê, ainda por cima é uma chatice porque está sempre a dizer palavrões", e isto com ar cansado quando, mais uma vez, seguia de jornalinho na mão a convencer o Jacó a portar-se com juízo e a regressar à gaiola. "Vá, se não te portas bem tenho que te meter na outra sala". Felizmente que o desejado papelinho chegou entretanto, porque a imaginação a fermentar cenários do Jacó a proferir obscenidades naquele cenário não ajudava a manter uma pose sóbria e serena. Saí com a sensação de ter atravessado a twilight zone. Numa esquadra da área metropolitana de Lisboa, ontem.