a beautiful child
a primeira vez que vi o zé tive medo dele. estava muito escuro e ele mais escuro ainda, na entrada do rock house, estátua núbia, muito sério, a examinar-me. deixou-me passar dessa, de todas as vezes. não me lembro como ficámos amigos: na imagem seguinte já lhe dou beijos e abraços, já saímos juntos, já vamos, eu, ele, a gaby e o miguel, que também já morreu, apanhar táxi para casa, sentar-nos nos pufs da casa do miguel e da gaby na madre deus, ouvir sunday morning nas primeiras horas de domingo, até estarmos suficientemente estafados para dormir.
levei mais de vinte anos para saber o nome dele e a idade (se é que nasceu mesmo em 1959). o zé nunca falava do passado, nunca contava nada sobre as cicatrizes, nunca falava da família. nem sequer das mulheres e dos filhos: nunca soube quantas tinha, quantos eram. lembro-me de uma vez estar com ele a atravessar o rossio e aparecer uma rapariga negra e ele a mandar para casa, com uns maus modos e uma autoridade que me gelaram. como se alguma coisa tribal vivesse nele, alguma coisa que eu nunca tinha visto nas noites do bairro alto e da madre deus, nas tardes no chiado, alguma coisa fora do universo de crianças brincalhonas, felizes, que era o nosso.
havia no zé outras vidas, sem dúvida. mas nunca lhe perguntei por elas, nunca quis sequer, eu que pergunto sempre tudo, saber. o meu zé da guiné era aquele gigante lindo, deslumbrante, maior que a vida, saído da bd com as suas roupas vintage, os chapéus e os bonés, a passada larga, fácil, o riso de dentes separados, os segredos guardados nos olhos sérios, as birras incompreensíveis que o faziam às vezes não me falar por alguma coisa que eu nem sabia que tinha feito.
o meu zé da guiné nunca mudou, nem sequer quando o voltei a ver numa cadeira de rodas, paródia do gigante invencível que despachava brigas num segundo, e riu para mim como se tivessemos ainda ontem ido sair, como se ainda ontem me tivesse ido levar ao comboio, como se 'continuassemos a andar sempre juntos'. 'éramos inseparáveis', disse ele, generoso, como se fosse verdade que eu não era capaz de fugir, que não era capaz de não ter coragem de encarar com ele o que aí vinha, que não era capaz de não ser capaz. mas não fui. e agora, como sempre soube que seria, é tarde.