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Sobre a Irlanda (ou como não fazer comparações)

João Miguel Tavares escreve hoje no “Público” uma crónica comparando o ajustamento na Irlanda e em Portugal:  

“A Irlanda reduziu o seu défice de 30,6% em 2010 para 7,3% (estimativa) em 2013 e quer atingir 5,1% em 2014. Estamos a falar de um esforço muitíssimo mais violento do que o português — uma queda de 25,5 pontos percentuais. Segundo o Financial Times, os cortes na despesa irlandesa desde 2008 já ascendem a 28 mil milhões de euros. O défice português em 2010 foi de 10,2%, e aquilo que se pretende é que ele venha a ser de 4% em 2014 — ou seja, uma diminuição de 6,2 pontos percentuais, quatro vezes menos do que a Irlanda.”

Imagino que o Joao Miguel Tavares tenha sido atraiçoado pelo jornal em causa,  mas estes números dificilmente fazem algum sentido.

Vamos por partes. Primeiro, o défice orçamental de 2010 na Irlanda só atingiu os 30,6% porque o Eurostat obrigou o país a registar o apoio extraordinário concedido ao setor financeiro nesse ano. Sem este efeito extraordinário, o défice teria sido de 10,6% do PIB. Isto pode ser visto em qualquer relatório do PAEF irlandês feito pelo FMI ou pela Comissão Europeia. 

 

Veja-se, já agora, como a redução do défice tem sido lenta na Irlanda. Por exemplo, entre 2012 e 2013 o défice – ainda a níveis altíssimos - praticamente não se moveu: passará de 7,6% para 7,5%, e isto num contexto que, não sendo de “crescimento” económico que se veja – cresceu 0,2% em 2012 e a Comissão Europeia estima que cresça apenas 0,3% em 2013 -, também não é de recessão como em Portugal (o que dificulta mais a consolidação). Isto não me parece um desempenho exemplar.

 

Quanto ao alegado corte de 28 mil milhões na despesa, a única explicação que encontro para este valor é um cálculo absurdo: o contabilizar o fim do efeito na despesa pública do apoio à banca – que causou o défice grotesco de 30,6% em 2010 -  como "redução de despesa". Em caso contrário, não vejo sinceramente onde está esse brutal corte de despesa. Vejamos o gráfico seguinte, que mostra a evolução da despesa nominal total na Irlanda: "despesa total", "despesa corrente", despesas com "investimento" e outra "despesa de capital". Podia ter reunido estas duas em "despesas de capital", mas deixo os itens separados para se perceber o que se passou. No que toca à despesa corrente, ela praticamente não se mexeu: era 64,3 mil milhões em 2008, no ano em que chega a crise, e será de 65 mil milhões no fim de 2013. Isto não quer dizer que não tenha havido cortes efetivos (ver abaixo). Quer dizer apenas que a Irlanda não teve uma queda da despesa nominal, e que é improvável que tenha havido cortes da ordem dos €28 mil milhões.

 

Em segundo lugar, para além do expectável corte de mais de €6,5 mil milhões na despesa com investimento, o comportamento atípico está na rubrica «outra despesa de capital», onde está contabilizado o apoio extraordinário ao setor financeiro. É esta a chave para perceber a ideia (falsa) de que a Irlanda «reduziu a 28 mil milhões de despesa» desde 2008.

 

Já que falamos de medidas de consolidação orçamental, vale a pena olhar para a composição destas nos anos que vão de 2011 a 2013, os do PAEF irlandês (o gráfico consta do relatório do FMI da 11ª revisão regular do programa, pode encontrá-lo aqui).

 

 

Repare-se que se é verdade que o programa previa uma maior redução de despesa do que aumento de receita, também é verdade que, no que toca à «despesa corrente» (a verde) – e quando se saliva por cortes na despesa, é da despesa corrente (i.e., de salários e pensões) que se fala -, ela vale precisamente o mesmo valor relativo ao aumento da receita (a amarelo): €5 mil milhões.

 

Vale também a pena comparar o esforço feito pela Irlanda ao longo deste três anos – contabilizam-se €13 mil milhões em medidas de consolidação – com o realizado por Portugal no mesmo período. Recuperando um célebre gráfico usado por Vítor Gaspar em março passado…

 

 

…vemos que, em 3 anos, as medidas de consolidação em Portugal – um país onde o peso da procura interna no PIB é superior, sendo por isso mais vulnerável aos efeitos recessivos da redução de despesa - atingiram quase €24 mil milhões, não muito longe do dobro do esforço irlandês. Se o ajustamento foi "violentíssimo", não sei bem como qualificar o português.

É verdade que os irlandeses começaram a ajustar a meio de 2008, dois anos antes de Portugal (lembram-se do PECI?). Ainda estou a tentar contabilizar quanto valeram as medidas nesses 2 anos e meio que antecederam o PAEF irlandês, mas não vejo como possa ser possível chegar €28 mil milhões de cortes na despesa sem recorrer ao artifício jornalística e politicamente desonesto de contabilizar nestes cálculos o valor usado para recapitalizar a banca em 2010.

 

Ah, é verdade, os irlandeses cortaram salários aos funcionários públicos. Sobre isto, vale a pena dar três notas :

1) A Comissão Europeia publicou recentemente um estudo sobre as diferenças salariais entre o setor público e o setor privado, com dados para os anos de 2006 e 2010. Portugal faz parte do grupo de países onde o prémio salarial da função pública é mais elevado: 11,9% (atenção, isto são dados de 2010, antes do corte médio de 5% para salários a partir de €1500 inscritos no OE2011, e, claro, dos cortes subsequentes; curiosamente, a Alemanha também faz parte deste grupo: o prémio salarial da função pública era em 2010 de 10%). Ora, como se comporta a Irlanda nesta questão ? A Irlanda era em 2010 (e não sei se os cálculos já integram os cortes feitos nesse anoa os funcionários irlandeses) o país onde o prémio salarial da função pública era o mais elevado de toda a UE: 21,2%.

2) Entre os anos 2000 e 2008, antes da crise internacional virar as economias de pernas para o ar, as diferenças que existiam entre Portugal e Irlanda quanto ao peso percentual das «despesas com pessoal» no PIB foram anuladas. Enquanto em Portugal, o país onde alegadamente o Estado gastou como se não houvesse amanhã, as despesas com pessoal baixaram de 13,7% para 12% do PIB (uma redução de 12%) nesse período, na Irlanda, esse Estado prudente e poupado, as despesas com pessoal aumentaram 40% (de 8,4% para 11,8% do PIB).

  

3) Claro que podemos sempre dizer que a Irlanda tem funcionários públicos excecionalmente bem pagos porque ele são poucos. O que nos dizem sobre isto os dados do recente «Government at a Glance 2013» da OCDE ?

 

Três coisas: que Portugal baixou a percentagem de funcionários públicos na população ativa entre 2001 e 2011; que os valores para Portugal são nestes dois anos inferiores à média da OCDE (e da Irlanda); e que a Irlanda não só aumentou a percentagem de funcionários entre 2001 e 2011, como passou de uma posição em que estava abaixo da média da OCDE em 2001 para uma posição acima da média em 2011.

 

Para fazer uma comparação séria entre o ajustamento nos dois países, convém levar em linha de conta todos estes elementos.

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