banho de vergonha
ao ler hoje o dn (edição impressa), deparo-me com isto:
'o director [da psp] advertiu que recorrer à força numa situação daquelas [a da manif das polícias] era potenciar um conflito que podia terminar num banho de sangue e reeditar uma versão ainda mais violenta dos 'secos e molhados' em 1989' (...) o ainda director explicou a miguel macedo [ministro da administração interna] a opção táctica do efectivo, incluindo a informação de que tinham sido observados alguns manifestantes armados.'
ora bem: temos portanto um director da psp (felizmente já demitido) a dizer a um ministro (que durante os acontecimentos que passaram em todas as tv e diziam respeito a uma manifestação de agentes de todas as polícias e basicamente contra ele devia estar, quê, a dormir?? a jogar gamão? a ler banda desenhada?) que:
1.polícias foram armados para uma manifestação e os polícias que lá estavam para controlar a manifestação deram por isso;
2. os polícias que lá estavam, ou seja, o comando, ou seja, o ministro, acharam que em face disso o melhor era deixá-los fazer tudo o que entendessem.
é isto, não é?
então, por partes: a lei em vigor para o direito de manifestação e reunião, o decreto-lei nº 406/74 (que é pré constitucional e pré democrático e que não se percebe porquê nunca foi mexido até hoje, apesar de estar obviamente desactualizado) diz muito claramente que ir armado para uma manifestação é crime e que quem promove a manifestação é responsável pelo desarmamento dos manifestantes:
2. Os promotores deverão pedir as armas aos portadores delas e entregá-las às autoridades.
logo, ao dar conta da presença de pessoas armadas na manif, os agentes da autoridade no local não cumpriram o seu dever, que era prendê-las, nem os organizadores da manif, os sindicatos das polícias, o seu, que era garantir que não havia gente armada, incorrendo no crime de desobediência qualificada (artigo 15º, 3. Aqueles que realizarem reuniões, comícios, manifestações ou desfiles contrariamente ao disposto neste diploma incorrerão no crime da desobediência qualificada);
logo, o facto de um director de polícia apresentar a presença de pessoas armadas numa manif como razão para a polícia não actuar pressupõe que a polícia por si comandada não só se demitiu de aplicar a lei como o fez por ter medo, o que é mau de mais para ser verdade, sendo-o no entanto.
o facto de os manifestantes alegadamente armados serem membros das forças de segurança e de a manif ter sido organizada por sindicatos que os representam significa que nem uns nem outros têm o menor respeito pela lei e se acham no direito de a violar, quando a sua estrita função e razão de ser é respeitá-la e fazê-la cumprir.
o facto de, alegadamente, um director nacional da psp usar como argumento a crença de que os agentes das forças da ordem que se manifestavam eram capazes de usar as armas que lhes foram distribuídas pelo estado contra a polícia que protegia o símbolo do estado e da democracia (o parlamento) diz bem do que alguém com a obrigação de conhecer os homens que comanda pensa deles: acha-os capazes de todas as barbaridades, até de 'um banho de sangue'.
perante isto, e perante o facto de nada se ter ouvido do ministro sobre isto, a demissão de um chefe da polícia é manifestamente insuficiente. é todo o sistema policial e toda a tutela que está em causa. é do culto da impunidade e da noção de estar acima da lei que conforma as polícias portuguesas que se trata -- e desta vez denunciado, mesmo que inconscientemente (??) por alguém que chefiou a psp durante mais de um ano.
que não se tenha ouvido até agora que a inspecção geral da administração interna, que depende do ministro e só pode agir com a sua autorização, vai investigar os acontecimentos é mais um sinal do completo desprezo pela lei e portanto pelo estado de direito e pela democracia que este episódio evidencia. desprezo e desrespeito que o ministro, naturalmente, corporiza, ao considerar que tudo se resolve com a demissão de um director da psp.
que perante isto haja quem considere que a subida da escadaria pelos manifestantes foi um sinal de 'viragem' e de 'esperança' é algo que só pode levar-nos a concluir que estamos muito longe de viver num país em que se saiba o que democracia quer dizer.