1987
A coisa caiu que nem uma bomba. Algures nos finais de 1986, fomos confrontados com panfletos, que circulavam um pouco por todo o lado, que descreviam o que o Ministério da Educação andava a preparar: um numerus clausus no final das licenciaturas de Letras que condicionava a profissionalização e a saída para o mercado de trabalho. O panorama era mais largo, evidentemente: Letras era uma fábrica de professores em áreas saturadas (já nessa altura), História, Línguas, Filosofia. Havia uma "via científica" (mestrados), mas nessa altura era coisa mais ou menos esotérica. Os alunos formavam-se já a pensar no único caminho que lhes era colocado adiante: o ensino. O ministro da Educação da época não era o Crato, mas tinha sensibilidade e tato idênticos. Chamava-se João de Deus Pinheiro. Subitamente, os alunos de Letras acordaram do seu torpor. Estavam a estudar, mas a sua licenciatura podia não servir para coisa nenhuma. Com o canudo na mão, teriam que se sujeitar a critérios (ainda obscuros e por definir) que lhes permitiriam, alegadamente, "especializar-se" na tal "via de ensino". Subitamente, a coisa explodiu. Evidentemente, havia um contexto local, na Faculdade de Letras de Lisboa, que favoreceu tudo. Nova associação de estudantes, do PSD, que ganhara inesperadamente e quebrara a hegemonia PCP. Uns putos laranja mais ou menos imberbes e cagões que não percebiam nada de nada. Não sei se o ME negociou alguma coisa com eles, se os contactou, se pediu a sua participação. Sei, sim, que os alunos não sabiam de nada. Subitamente, saem panfletos a perguntar "sabes o que que está a ser preparado nas tuas costas?". E os cagões laranjas, em vez de esclarecerem, remeteram-se ao silêncio (percebia-se que não gostavam da ralé, qu'éramos a gente). Bum. De RGA em RGA, os meninos do PCP voltaram a tomar as rédeas do processo: decidiu-se que a AE não era representativa dos interesses dos estudantes e elegeu-se uma Comissão que, doravante, os representaria e que o ministro, evidentemente, não reconheceu.
Foi um ano peculiar. Eu estava no 2º ano e vivi a coisa por dentro. RGAs inflamadas, moções voltadas por unanimidade, protestos na rua, greves, manifestações. Os estudantes queriam saber o que os esperava, exigiam respostas e a abolição do tal numerus clausus, saídas profissionais. As RGAs eram muito interessantes: votações unânimes (quem não concordava nem sequer conseguia falar, muitas vezes, e abandonava a sala), Gil Garcia aos berros (era o único que falava sem microfone), moções "para ocupar a RTP", 1 minuto de silêncio pela morte do Zeca, canto do Grândola e embaraço geral porque enrolámo-nos todos logo na 2ª estrofe; salvou-nos um alentejano de gema que lá estava e continuou a cantar tudo, perfeitinho, até ao fim (e sozinho, claro).
No dia 13 de março de 1987, os estudantes fizeram uma manifestação junto ao Ministério. O ministro não está? então toca de ir até ao Rossio. E fomos. Assim, sem nada marcado. Imagine-se a confusão de trânsito causada por centenas de estudantes a desfilar, num dia de semana, entre a 5 de Outubro e o Rossio. Os automobilistas acenavam e aplaudiam (alguns, pelo menos). A polícia? Ohh eram outros tempos, barravam as ruas para nos deixar passar. Chegados ao Rossio, acabou a festa. Estava lá o corpo de intervenção à nossa espera. Sentámo-nos, fizemos uma última prova da nossa indignação e fomos todos para casa. Não houve incidentes. No noticiário da noite não passou nada. Os boicotes da RTP não eram fachada, eram mesmo verdade. Não havia redes sociais, internet, telemóveis. O país não soube de nada. Nem sequer como, nesse dia, os estudantes paralisaram meia Lisboa de improviso, sem confrontos nem cargas policiais. Estranho dia, esse. Na manhã seguinte, um único jornal dava conta do que ocorrera. O Diário, pois claro. Para o resto do país, nada acontecera.
(Descobri uma pasta cheia de recortes. Acho que vou digitalizá-los e enfiá-los num blog)