Portugal: Trepa e Malho
Estou desde domingo para escrever isto. Sim. Não. Lá vai disto. Não vale a pena. Por fim, para não ficar entalada, cá vai. Há coisas que me fazem impressão. Uma delas é ver gente de inegável inteligência, percurso académico e relevância social escrever indigências e banalidades estereotipadas. Falo de Jaime Nogueira Pinto e das suas declarações ao Público no passado domingo (ed. impressa, pág. 14), a propósito do seu mais recente livro, "Portugal: Ascenção e Queda". Tenho curiosidade em lê-lo, mas até tremo a pensar no que encontraria por lá. Se calhar estou equivocado, a mandar bitaites sem conhecimento de causa, quem sabe. Mas não posso deixar de oscilar entre o divertido e o amargurado perante a ligeireza do discurso sobre a "ascensão" e "queda" de Portugal, num aparente saudosismo por uma "idade de ouro" passada e distante. Presumo que a "ascensão" tenha sido iniciada - como não podia deixar de ser - no século XV, com os descobrimentos e aquilo que se sabe. Agora a "queda", quando terá sido? em 74? em 86? hoje? Portugal esteve séculos a subir e subitamente caiu? Ou terá sido logo após o que chama de "uma época de ouro, um século, entre Ceuta (1415) e a morte de Afonso de Albuquerque (1515)"? O início da tal "decadência"? "Depois desse período de ouro entramos na normalidade", afirma. Se assim foi, Portugal é normalmente decadente e estamos a cair há 5 séculos. Como é possível que ainda não estejamos já desaparecidos, enterrados, afundados há muito? Ou, quem sabe, terá havido contraciclos, épocas de fugaz ressuscitar do cadáver? um deles, deixem-me adivinhar, durou 48 anos, acertei?
Já cansa, já estafa, já entedia a repetição de velhas receitas, gastas e simplistas, sobre ascensão e queda, a equiparação das civilizações a "idades". Não é preciso ir a Spengler, já no século XVII, o pe. Manuel Godinho aplicava a velha ideia ao império português na Ásia, fazendo equivaler infância, juventude, maturidade e decrepitude aos reinados de D. Manuel, D. João III, D. Sebastião e Filipe I. Já nessa altura se suspirava por uma era perdida, quando os homens eram vigorosos e de fibra, quando comparados com os corruptos e amolecidos do seu tempo. Deprime que JNP volte a tocar em cordas carcomidas, "o povo português bem guiado" pelos "heróis indiscutidos", os "heróis do século XV e XVI": "Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque". Curiosamente, nenhum destes foi verdadeiramente um líder político. Pereira foi um chefe militar que se remeteu à penumbra, Henrique foi chefe, sim, mas de uma ordem religiosa e de uns quantos escudeiros e marinheiros de Lagos que executavam uma empresa que, à época, pouco tinha de nacional. Gama teve a sorte de ser nomeado comandante de uma expedição pioneira, caso contrário poucos reconheceriam hoje o seu nome, e não se lhe conhecem relevantes capacidades de liderança, militares ou diplomáticas. Albuquerque foi um comandante militar excecional e um estratega ímpar, é verdade, mas era odiado pelos seus contemporâneos como poucos o foram. O seu estatuto de "herói" foi póstumo. Tudo isto são sedimentações da memória, embrulhos a posteriori, elaborações, imagens e construções tardias.
JNP conhece os pensadores do século XIX e sabe que já Eça, Antero, Oliveira Martins eram pessimistas. Um deles até escreveu uma "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares". Mas antes deles já muitos haviam discorrido sobre os tropeções do império, suspirado pela eras passadas de grandeza e esplendor, remoído fel acerca da situação "presente". Nada de original, portanto. É uma insuficiência comum, esta: a de não conseguir ir além da "geração de 70". Vasco Pulido Valente, por exemplo, enferma do mesmo mal.
Fala também em "duas originalidades" portuguesas: uma delas é o "enquadramento político das Descobertas" que, confesso, não percebi o que seja. Terei que ler o livro para lá chegar. Diz que as restantes potências europeias, "nas aventuras coloniais, praticam o imperialismo" mas Portugal não, pelo que "não ficou nada" das "quatro fortunas" (especiarias, ouro, diamantes e café). Para além do aroma lusotropicalista da afirmação, muito haveria a dizer acerca de cada uma das ditas "fortunas". Fico-me pelas famigeradas especiarias: saberá JNP que eram compradas com ouro, de que Portugal (a Europa, aliás) carecia, que era necessário obter este último na costa oriental africana a troco de tecidos indianos? Logo, que se tratava de um jogo de trocas, muito menos lucrativo que uma simples extração de metal precioso? Os espanhóis obtinham quantidades gigantescas de prata extraída na América, com que inundavam a Europa e a China - via Manila - mas Portugal tinha que suportar, com armadas, fortalezas, homens, uma empresa asiática cuja rendibilidade estava na própria Ásia, e não na rota do Cabo. Aliás, a Europa estava sedenta de prata e de ouro, não exatamente de pimenta ou de canela. E, já agora, os portugueses nunca controlaram a produção de especiaria nenhuma, ao contrário do que viriam a fazer os holandeses com a canela, noz moscada ou o cravo, por exemplo.
Por fim, a alegada "segunda originalidade" portuguesa era, segundo o autor, a rejeição nacional daquilo que vinha da Europa mas que "implicava com a independência"; no século XIV "recusámos um rei espanhol", diz. E no XVI? ahhh já estávamos decadentes, não é? Por fim, o inevitável mito sebástico. Pasmo: "os dons Sebastiões que surgem nos séculos XVI e XVII são rebeldes"; ora bolas, mas haveriam de ser o quê? haverá algum messianismo que o não seja? que seja conformista, subserviente, respeitador da ordem vigente? Um pouco mais de azul, um pouco mais de ciência, de entendimento das complexidades históricas, de profundidade e de conhecimento das especificidades de cada época e menos de banalidades ideológicas e de reprodução de ideias feitas do século XIX, exige-se. Eu, pelo menos, aconselharia. É claro, posso estar enganado, o livro pode ser o contrário de tudo o que escrevi aqui. Mas, pela amostra, permito-me duvidar.

