Outras notas sobre o PISA2012, a liberdade de escolha e a autonomia das escolas
O Alexandre Homem Cristo (AHC) respondeu ao meu post anterior e deixou notas importantes. Retomando o caso sueco, AHC refere que o problema fundamental talvez resida «na autonomia escolar, que teria sido dada às escolas sem um enquadramento adequado, deixando professores e diretores escolares um pouco desorientados». E diz mais à frente: «mais do que a liberdade de escolher, a reforma educativa na Suécia deu às escolas elevados graus de autonomia que, no entanto, não foram devidamente enquadrados, tendo provavelmente produzido a conhecida queda de resultados».
AHC desvia, portanto, a discussão da “competição” para a “autonomia”, que são coisas diferentes; pode haver a primeira sem a segunda, e a segunda sem a primeira. Embora haja uma ligeiríssima tendência para que os sistemas educativos com mais competição tenham mais autonomia (a associação, no PISA, entre o “índice de competição” e o “índice de autonomia nas questões curriculares e de avaliação” é R2=0,13, e entre o “índice de competição” e o “índice de autonomia na alocação de recursos” é R2=0,08), o essencial é que a autonomia é compatível com diferentes níveis de competição. Ao longo destes anos, o OCDE tem geralmente defendido que a autonomia das escolas é um elemento importante nos sistemas com melhores desempenho, o mesmo não acontecendo com a competição. Esta questão suscita-me os seguintes comentários:
1.O argumento inicial de AHC de que o problema na Suécia não está na “competição” mas na “autonomia” desvaloriza, parece-me, o facto de os sistemas funcionarem numa lógica de complementaridade institucional. Afirmar, num sistema com fraco desempenho e composto pelos eixos fundamentais A+B(+C+…) que interagem orgânica e sistematicamente, que a culpa é de B (“autonomia”) mas A (“competição”) não tem nada a ver com o assunto, é assumir que B não é em nada afetado ou condicionada pela dinâmica de A. Ora, é pouco verosímil que, sendo a competição entre escolas um eixo fundamental do modelo sueco, nada tenha a ver com a forma como as escolas usam o espaço da autonomia que lhes é conferido; ou seja, que as opções tomadas no domínio curricular, da avaliação, da alocação e gestão de recursos humanos, organizacionais, etc., seja totalmente independente da forma como os alunos são alocados às escolas e como elas adaptam o seu comportamento para competir pelos alunos. Por exemplo, de acordo com os diretores de escola inquiridos pelo PISA, 85% dos alunos suecos estudam em escolas onde os resultados são usados para efeitos de comparação com “outras escolas” e 90% em escolas onde os resultados são usados para comparação com o desempenho “distrital ou nacional”, o que faz da Suécia o 4.º país da OCDE onde as notas mais são usadas para efeito de comparação (a média da OCDE é 53% e 63%, respetivamente; ver vol.IV, figura IV.4.11., p.149). Este é um bom indicador do nível de competição embedded no sistema, onde, em 2012, nos grandes centros urbanos, perto de 1 em cada 4 os alunos estudava numa escola independente (recordo que não há diferença significativa de resultados no PISA entre os alunos das zonas rurais, semi-urbanas e urbanas; ver vol.II, tabela II.3.3.a., p.223). Será que estas pressões resultantes da competição não têm efeito no modo como a autonomia é usada? Outro exemplo, ligado à possibilidade de as escolas livres poderem ter lucro: será que é possível desligar este “estímulo” da forma como a escola faz uso da sua autonomia? Não é possível pensar como esta realidade introduz facilmente incentivos perversos que ajudam a explicar o declínio de standards em algumas escolas suecas? Se os pais quiserem que os seus filhos sigam cursos mais “fáceis”; se a escola não tiver nenhuma limitação para os abrir; e se a escola ganhar mais dinheiro se aumentar as vagas nesses cursos, estamos perante uma situação absolutamente normal de mercado educativo: a procura livre de um serviço é satisfeita pela oferta livre desse serviço; o resultado é um aumento dos lucros da organização que melhor responde à procura dos estudantes, satisfazendo os seus objetivos (afinal, eles terão escolhido livremente aquela oferta educativa). Do ponto educativo, porém, há um problema bastante claro: a procura do lucro por parte da organização pode ser um incentivo a “despachar”, do ponto de vista do ensino e da aprenzizagem, alunos que se calhar também não se importam de ser “despachados”. Neste exemplo, e para contrariar a tese do AHC, não é apenas o uso da autonomia que é nocivo para a educação: o problema radica precisamente nos incentivos inscritos nesta configuração particular do binómio “competição + autonomia”.
2. AHC procura isentar a “competição” de responsabilidades no maus resultados, culpando assim a “autonomia”, que terá sido institucionalizada, diz-se, sem o devido “enquadramento”. Em abstrato, eu nem discordo da observação de AHC sobre a necessidade de enquadramento da autonomia (“enquadrar” a autonomia parece-me ser sinónimo de “definir fronteiras”, “orientações”, numa expressão, de “limitar” a autonomia, é isso?); no entanto, o que isto representa é, afinal de contas, um reconhecimento que as escolas podem, sem orientações centralizadas/externas/superiores, não saber o que fazer com a sua nova “liberdade”. Por terra, parece-me, fica a ideia de que a “autonomia é boa em si mesma”, ou que “quanto mais autonomia melhor”, ou que as “escolas sabem perfeitamente o que fazer”, e o que querem é simplesmente que o “Estado saia das suas costas”. Casos parece haver, afinal, em que as escolas podem não saber como lidar com a sua liberdade ou podem usá-la “mal”; e, atenção, estamos a falar de uma situação (a sueca) com 20 anos, tempo suficiente para permitir que as organizações aprendam, se tiverem necessidade disso, a lidar com o ambiente externo e interno. Este é um argumento do qual eu (em abstracto) nem discordo, mas confesso ser interessante encontrá-lo vindo da área liberal.
De qualquer forma, quando AHC lembra, a partir de resultados do próprio PISA2012, que o efeito positivo da autonomia nos desempenhos escolares depende da verificação de outras condições – em concreto: de as escolas publicarem os resultados escolares; de os aspetos curriculares estarem relativamente padronizados (o que é um pouco estranho, dado que esta padronização significa, por definição, uma redução da autonomia); de os professores participarem mais nos assuntos da escola (no caso em que as escolas são cada vez mais geridas como empresas, que participação é esta?) - está precisamente a fazer o exercício que eu fiz no ponto anterior em relação à competição (é pena que o PISA2012 não dê ao tema da “competição” e da escolha da escola a mesma atenção que dá ao tema da “autonomia”). Assim, tal como não podemos pensar a autonomia das escolas independentemente da interacção com outros fatores (como AHC recorda), também não deve ser possível pensar o modelo de “competição” de forma isolada ou separada da “autonomia”, culpando apenas esta de todos os insuficiências do sistema. É inevitável perguntar: não devia o efeito da competição ele próprio tornar desnecessário qualquer “enquadramento” da “autonomia”? Não deveria a competição colocar, mais ou menos automaticamente, em marcha todo um conjunto de mecanismos disciplinadores (pressão dos pais, pressão da administração, pressão do lucro) que constituiríam eles próprios o “enquadramento” (de mercado) correto, tornando qualquer outro enquadramento (público?) não apenas como desnecessário, como, sobretudo, intrusivo e destruidor das dinâmicas locais? A competição não devia ser ela própria a variável independente – lendo alguns defensores do modelo, uma verdadeira “bala mágica” – à qual todo o sistema se adaptaria, capaz de “limpar” as instituições e as práticas escleróticas do passado?
De qualquer forma, mantenho o que escrevi no post anterior sobre os efeitos de um sistema assente no paradigma da competição. Mesmo que não seja o responsável direto pelo declínio de resultados – não é óbvio, como AHC também reconhece, identificar os fatores que explicam essa regressão generalizada -, também a torna pouco útil, no melhor dos casos, e um obstáculo, no pior, para a resolução dos problemas a que um sistema educativo tem de fazer face. Se a competição, enquanto trave mestra de organização do sistema, impedir que, por exemplo, um modelo público de intervenção mais robusto disponha de instrumentos de política que reduzam a competição e, ao mesmo tempo, obriguem as escolas a melhorar o desempenho dos estudantes que revelam mais dificuldades; ou seja, se ela estiver a impedir que uma sinergia entre o centro político e as escolas dotadas de relativa autonomia produza um impacto positivo nos resultados dos alunos, então é possível responsabilizar um modelo que deposita na competição a responsabilidade fundamental de melhoria do sistema. AHC desvaloriza esta ideia, dizendo que ela não explica, em si, a quebra de resultados; talvez, mas o facto de um modelo que alia competição e autonomia (i) não ser capaz de travar a regressão de resultados e (ii) poder reduzir o espaço de políticas alternativas que sejam capazes de melhorar o desempenho do sistema já é suficientemente danoso para a sua reputação.
3. Sobre a satisfação dos pais, o meu objetivo não era bem “refutar” a ideia de que a liberdade de escolha agrada às famílias. Os dados que usei eram referentes ao sistema, e não relativas a essa questão em particular, e por isso quaisquer conclusões só podiam ser relevantes para a opinião mais global. Estou de acordo com o AHC que só dados mais finos e que permitissem comparação internacional ajudariam na resposta a esta questão; o ideal, provavelmente inexequível, era que o PISA também entrevistasse no futuro, para alem dos alunos, as suas famílias.
De qualquer forma, vale a pena olhar para os dados do último Eurobarómetro publicados na sexta-feira. Quando questionados sobre as duas questões que, pessoalmente, mais preocupam o inquirido, a educação sobressai nas respostas dos inquiridos suecos: 35% escolhem esta rubrica, mais do triplo da média europeia (10%). (carregar aqui para ver a aumentar a imagem)
4. Para descentrar o comentário exclusivamente do caso sueco, parece-me importante sublinhar aquelas que são provavelmente as mensagens mais importantes dos relatórios PISA: sistemas com modelos educativos muito diferentes podem produzir bons resultados; modelos educativos muito diferentes podem evoluir (ou regredir), sem ser necessário fazer “reformas estruturais” que alterem profundamente a lógica de organização do sistema (como aconteceu, com resultados medíocres, na Suécia); não há “soluções mágicas”, como muitos propagandeiam, porque os sistemas educativos são o resultado da interacção de inúmeros elementos cuja sinergia nem sempre sabemos como melhorar de forma rápida e inequívoca; apesar de tudo, há políticas públicas que, concretizadas de forma cuidadosa e estudada, podem melhorar o desempenho do sistema sem haver a necessidade de o revolucionar; é perfeitamente possível (e desejável) melhorar a qualidade das aprendizagens ao mesmo tempo que se reduzem as desigualdades dentro do sistema (ou seja, o trade off entre eficiência e equidade é em muitas situações inexistente); e, quando a análise leva em linha de conta as condições sociais dos alunos e das escolas (variável fundamental que muita economia de educação continua a ignorar e, dessa forma, a enviesar as conclusões que tira sobre o funcionamento e a eficácia dos sistemas educativos), muitas das ideias feitas sobre a eficiência da despesa pública, sobre o efeito da competição entre escolas ou sobre as diferenças de qualidade entre ensino público e privado caem por terra. O PISA não fornece nem nunca fornecerá a “prova definitiva” sobre qual é o melhor sistema educativo do mundo; mas ao longo dos últimos anos fez muito para introduzir prudência e humildade numa discussão tantas vezes dominada por agendas ideológicas e/ou económicas.