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memórias e trapaças

O caso das declarações de José Sócrates acerca de Eusébio e do célebre jogo Portugal-Coreia do Norte, no Mundial de 1966, é muito interessante. Não tanto pelo "caso em si" mas pelo que revela. E o que revela não é agradável: meio país preso ao facto de um ex-primeiro ministro ter dito que ia a caminho da escola quando o Eusébio espetava quatro golos de uma assentada aos olhos-em-bico. Era sábado? em julho? mas que aldrabão. Queriam uma prova em como mente com quantos dentes tem na boca? ei-la. É mais forte do que ele. Quando ouvi e verifiquei a data, fiz um "tsc tsc, realmente...". E larguei. Depois, e com alguma surpresa (sei que não devia) vi o impacto que a coisa teve, entre o inefável Correio da Manhã ("Sócrates  mente a propósito de Eusébio" ou parecido) e a galhofa nas "redes sociais". Bom. Até aqui, a oeste nada de novo. Até que li umas coisas mais irritantes. Uma em particular, que me levou a escrever isto, por mesquinho que pareça: o comentário no Facebook de um político da nossa praça. "Dá que pensar", começa ele, descrevendo o tropeção de Sócrates e colando-o com Araldite à sua governação, à Troika e ao FMI, terminando com um "Ainda há muito quem nele acredite". Este cavalheiro chama-se Nuno Melo. O que escreveu é "público" no Facebook.

Ora bem. Custa-me um pouco engolir o nível a que se chegou e como uma coisa destas, que noutros tempos daria umas anedotas de café, merece comentários políticos de um eurodeputado. Não bastou a campanha de calúnias e de difamação, de insinuação. Não chegou a tese do Moreira de Sá. Fosse eu Tomás de Torquemada e o senhor Nuno Melo veria as suas afirmações escrutinadas ao milímetro, dia a dia. Não demoraria muito até lhe ser proferido o veredito, um ferrete marcado a quente na testa: aldrabão! mesmo que sobre pormenores da sua vida, pedaços da sua infância, minudências sem importância. Porque Nuno Melo, que é certamente católico e praticante, conhece decerto a parábola do argueiro no olho.

Vejamos: ou Sócrates disse uma verdade, ou não a disse. Se a disse (assim foi, ia para a escola nesse dia, mesmo sendo sábado, blá blá), ok. Se não a disse, das duas, uma: ou mentiu propositadamente, ou faltou à verdade sem intenção. Se mentiu de propósito, alguém que me explique a razão porque raio o fez. Não seria mais útil inventar uma história mais edificante? que estava a ajudar velhinhas a atravessar a rua, a dar de comer aos famintos, a vestir os rotos, a ajudar a avózinha? Ou, simplesmente, que não viu, que não se lembrava? ora bolas.

Então, o que resta? a hipótese mais plausível (isto sou eu armado em psicólogo da treta): que a memória prega partidas, que se lembra de andar na rua, sabe-se lá (sabe lá ele, quem quer saber, mas que raio interessa?) se ia para a escola, se ia jogar à bola com os amigos, roubar figos ou espreitar a garota de tranças, não importa. E que, consciente ou inconscientemente, isso é lembrado como "ir para a escola".

Hoje fiz um teste com alguém que me veio com a galhofa da nova intrujice do Sócrates. Um teste sobre um determinado episódio ocorrido há uns 14 anos. Eu tenho uma versão, e essa pessoa tem outra. Não estou a inventar. Há anos que andamos a tentar convencer-nos mutuamente de que o outro está errado. Ambos podemos jurar a pés juntos, e testemunhar em tribunal, que "foi assim". Não coincidem. Alguém mente? Não. Ambos "vemos" o incidente e provamos que o outro está errado. A memória prega partidas. É claro que um estará certo (eu, claro) e o outro, errado. Se se tratasse de um crime, de um evento importante, haveria formas de apurar tudo. Não é o caso. Como não é o que fez o menino José Sousa nesse dia.

Isto aí em 1999. Tínhamos ambos 30 e poucos anos. Agora, senhores juízes, jurados e julgadores da mula russa, de memória intacta, impecável e impoluta, muitos deles tão benevolentes a deixar passar a "incorreção factual" amnésica de um certo ministro, envolvendo interesses e ações da SNL há menos de 10 anos, e a olhar para o outro lado quando um certo secretário de estado "não se lembrava" se esteve ou não presente numa reunião onde a sua empresa tentou impingir swaps de milhões ao governo, também há poucos anos, digam-me lá, francamente, o que pode acontecer a uma memória de infância de alguém que tinha 9 anos de idade nesse dia, longínquo, sobre o qual já se passaram 47.

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