somos todos fitz quintela
Não conhece este nome, pois não? É o de um jovem advogado morto em 1977 por um agente da PSP. Ia a passar de carro em Monsanto, o agente confundiu-o com alguém, ou deu-lhe ordem de parar e ele não parou - uma coisa assim. À época, a Ordem dos Advogados protestava: "O direito à vida de um cidadão foi banalmente destruído por um equívoco que nada ou ninguém poderá desculpabilizar ou aligeirar no seu significado. [...] Reclama-se, com peremptoriedade, que as autoridades saibam usar responsavelmente a força que lhes é conferida e que nunca subalternizem a vida e a integridade física e moral dos cidadãos. E espera-se que o governo tome, de imediato, as adequadas providências. " O agente foi condenado a quatro meses de prisão com pena suspensa. Era o princípio da democracia e do Estado de direito. Estávamos a aprender.
31 anos depois, um adolescente de 13 anos, Paulo Lourenço, morre às balas da GNR. O agente que atirou não sabia que o miúdo ia na carrinha que fugia de um alegado assalto, houve "tentativa de atropelamento", divisou "um objecto" ou "um movimento estranho", e zás. O equívoco causa consternação: matar crianças, mesmo se envolvidas num assalto, é complicado. Diferente de matar um homem de 25 anos só porque não parou à ordem da GNR. Foi o que sucedeu a Ricardo Sousa, a 6 de Julho. Como a Vítor Hugo, 21 anos, morto com outra bala da GNR, em Outubro de 2006, quando vinha, à uma da manhã, também no Porto, de uma noite de copos com amigos, no banco de trás de um carro que não parou à ordem de stop. Como a Paulo Duque, 19 anos, em Fevereiro de 2006, no Barreiro: trocou palavras com agentes da GNR, fugiu a pé e levou um tiro. O guarda que matou Vítor Hugo continua ao serviço enquanto aguarda julgamento por homicídio. A Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) recomenda reforma compulsiva mas o processo disciplinar na GNR "aguarda a conclusão do processo crime". Também à espera de ser julgado está o guarda que matou Paulo Duque - diz que ia a correr de arma na mão, caiu e atingiu-o. Um acidente, portanto. 31 anos depois da morte de Fitz Quintela, com uma lei de 1999 a especificar que a polícia só pode usar a arma de fogo contra pessoas para "repelir agressão actual ilícita que ameace vidas humanas" ou para "deter quem represente essa ameaça", os acidentes e os equívocos continuam. Pessoas continuam a morrer estupidamente, banalmente, em situações em que os agentes não estavam legitimados sequer a retirar a arma do coldre. "Campeia por aí o xerifado", disse em 2006 ao DN o juiz Clemente Lima, que dirige a IGAI, a propósito destes casos, queixando-se de "solidão" e de "falta de colaboração das corporações". Lima continua em funções e o xerifado como antes: a IGAI, criada em 96 após a decapitação no posto da GNR de Sacavém, não tem sido muito eficaz. E o pior de tudo é que não só a maioria não se rala nada com isso como apela a acções extremas da polícia como aquela que vitimou - legítima e legalmente, diga-se - um assaltante no BES de Campolide. Confundir eficácia policial com licença para matar revela não só uma deplorável histeria securitária e um desprezo obsceno pela vida humana como uma espantosa falta de imaginação. Somos todos Fitz Quintela, ainda não perceberam? (publicado hoje no dn)