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o veto paradoxal

O parlamento aprovou uma lei que acaba com o divórcio litigioso e o Presidente vetou-a, com o argumento de existiria uma “parte mais fraca” do casamento, que considera ser “em regra a mulher”, e que esta é prejudicada pelo divórcio por iniciativa do outro cônjuge.

O veto não explicita por que motivo num instituto jurídico que desde 1977 estatui que os cônjuges são iguais (sim, antes a lei definia a “fraca” e o “forte”) a mulher será a parte mais fraca. Podemos inferir que fala do facto de tradicionalmente as mulheres ganharem menos que os homens. Mas segundo dados estatísticos divulgados no DN de 17 de Agosto são já mais de 30% os lares portugueses em que a mulher é “o indivíduo de referência”, ou seja, o principal financiador do lar. Mais: como se lê no DN, “entre as mulheres dos 24 aos 44 anos, que são indivíduos de referência para as respectivas famílias, o diferencial de rendimento em relação aos homens da mesma tipologia é praticamente nulo”. Por outro lado, a argumentação do veto leva a crer que é mais comum o homem pedir o divórcio, apesar de não apresentar qualquer evidência disso e de a evolução do número dos divórcios – que tem em Portugal o país europeu com a maior taxa de crescimento –, indiciar o contrário, acompanhando o aumento da autonomia, financeira e não só, das mulheres.

A argumentação de Cavaco, porém, não se limita à “debilidade financeira” das mulheres e a insinuar que seriam elas a querer, “em regra”, manter casamentos falhados por motivos económicos. Convoca ainda a violência doméstica de homens sobre mulheres no seio do casamento para “demonstrar” que a possibilidade de o agressor pedir e obter o divórcio da agredida (que agrediu, frisa-se, “ao longo de vários anos”) é uma desprotecção da “parte fraca”. Ora não só o testemunho das associações que lidam com o crime de violência doméstica aponta no sentido de que o problema é em regra o inverso, ou seja, são as vítimas a querer divorciar-se dos agressores e estes a não “dar” o divórcio, como há estudos internacionais que demonstram ser o divórcio a pedido de um dos cônjuges sem “litígio” – como sucede na generalidade dos países ocidentais, com estreia no estado americano da Califórnia, em 1969, sob a batuta de Ronald Reagan – uma importante contribuição para diminuir a violência conjugal. Além disso, é no mínimo bizarra a ideia de que uma pessoa (mulher ou homem) que fosse sistematicamente agredida pelo cônjuge ficaria “desprotegida” quando este solicitasse e obtivesse o divórcio.

Que “protecção” é esta que o casamento, mesmo o casamento declaradamente violento e vitimizador, concede, na visão do Presidente? O veto esclarece: “um cônjuge economicamente mais débil pode sujeitar-se a uma violação reiterada dos deveres conjugais sob a ameaça de, se assim não proceder, o outro cônjuge requerer o divórcio unilateralmente”. Voltamos pois à questão económica. Mas admitindo que existem situações em que pessoas aceitam todo o tipo de agravos, incluindo crimes, por motivos financeiros, o que fica por perceber é porque é que Cavaco acha que essas situações são agravadas – ou mesmo criadas (?!) -- pela nova lei e por que motivo acha que seria sempre o cônjuge mais rico a beneficiar da possibilidade de obter o divórcio sem comum acordo.

Ao apresentar o divórcio ou a sua mera possibilidade como um mal mesmo em casamentos para lá de péssimos e nos quais as “fracas” mulheres são caracterizadas como vítimas resignadas e desmunidas, o Presidente acaba por incorrer num paradoxo involuntário. O de demonstrar o quanto os chamados “votos” ou “deveres” do casamento podem ser vácuos e pervertidos e o quanto é necessário repensar o seu enquadramento jurídico e simbólico. O casamento desenhado pelo veto é um lugar de violência, chantagem, mesquinhez e venalidade. Um quadro de miséria emocional que ninguém em seu perfeito juízo desejaria manter.
(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 31 de agosto)

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