Nomear sob escrutínio
O Público tinha há dois dias alguns artigos respeitantes à Cresap, que teve até honras de editorial, onde a questão fundamental que este organismo convoca é tratada como lateral. Creio que é importante para o debate político recolocar os termos da discussão sobre o modo de recrutamento dos dirigentes da Administração Pública.
Em primeiro lugar, é preciso ter noção que os dirigentes da administração pública ocupam um lugar único na estrutura da Administração Pública na medida em que se situam entre um órgão que por força da Constituição é simultaneamente administrativo e político - o Governo - e uma estrutura técnica, dirigida única e exclusivamente à prossecução do interesse público tal como legislado. Devido a esta posição de membrana entre um universo que é político e outro que é técnico, a discussão sobre a selecção dos dirigentes de topo da Administração Pública terá sempre que ser tida entre os vectores da confiança política e do mérito profissional.
Evidentemente podemos imaginar sistemas em que se tente excluir toda a confiança política por se entender que toda a Administração Pública deve ser composta apenas em razão do mérito e que a confiança política não tratará nenhuma vantagem acrescida. Este modelo vive de uma separação acentuada entre gabinetes governamentais e administração pública, presumindo que o topo da Administração Pública, não obstante o seu contacto directo e constante com órgãos (sobretudo) políticos não implicará problemas na motivação, modos de execução de políticas pública e outros.
Do outro lado dificilmente alguém defenderia um modelo em que se excluisse o mérito como factor de escolha em detrimento da confiança política.
Na verdade o que sempre se tentou fazer foi encontrar o ponto de equilíbrio óptimo de acordo com um conjunto de pressupostos culturais e de um continuado debate político. Num determinado método de selecção de dirigentes pretende assegurar-se uma certa medida de confiança política e de mérito profissional.
Daí que, em segundo lugar, tenhamos que olhar para o que temos em Portugal hoje. E a verdade é que temos três métodos distintos de selecção de dirigentes de topo da Administração Pública. Na Administração Pública não-empresarial (institutos públicos, sobretudo) com este governo passou-se da nomeação política para o concurso, via Cresap. Mas, também com este Governo, manteve-se para a Administração Pública Empresarial o método de nomeação e de eleição. No caso das EPE (ex: todos os hospitais públicos) a regra é a nomeação sujeita a um parecer não vinculativo da Cresap. Já no caso da empresas públicas SA a regra é a eleição, sendo que como o Governo é o accionista único ou maioritário elege quem quer.
Assim se vê que na verdade a discussão em Portugal continua a fazer-se entre modos que parecem privilegiar o mérito em detrimento da confiança política - o concurso público - mas como o Público demontrou, com reduzido sucesso porque a confiança política acaba por entrar no sistema; e modos que assumem a confiança política como essencial, embora tentem integrar elementos que fundamentam e demonstram o mérito profissional.
A questão pode parecer tanto mais estranha quanto o facto de o actual Governo ter exigido o concurso público para a Administração Pública não empresarial - tipicamente aquela que tem uma estrutura mais hierarquizada e é mais responsável pela prossecução de políticas públicas e onde por isso a confiança política na transição entre Governo e Administração Pública é mais importante; quando para as empresas públicas, que actuam no mercado, sujeitas quase sempre apenas a critérios de eficiência, preferiu métodos que privilegiam a confiança política.
Devo, contudo, dizer que o método de selecção dos dirigentes da Administração Pública empresarial de tipo EPE (ex: os hospitais públicos) é aquele que aponta no caminho certo, embora ainda pudesse ser complementado com um aspecto que me parece deficitário no sistema parlamentar português.
A nomeação com parecer prévio não vinculativo da Cresap combina confiança política e mérito prossional. Mas para isso o parecer tem que ser público e devia ainda exigir-se que complementarmente os dirigentes máximos fossem ouvidos no Parlamento e até confirmados por uma maioria de dois terços dos deputados. Dir-me-ão que esta última medida é ir longe demais, que conduziria à paralisia do sistema, à batalha campal política. É verdade. Não temos ainda a cultura política de outros sistemas comparados e não é possível fazê-lo já. Mas é desejável.
Para já, contudo, tornar como regra o regime de nomeação dos dirigentes máximos da Administração Pública de tipo empresarial EPE seria uma boa ideia e demonstraria equilíbrio entre confiança política e mérito profissional. Algo que a medida populista do concurso público não assegura só por si, como a análise ao trabalho da Cresap bem demonstra. E note-se que o problema não é a Cresap, que me parece útil, mas o que se lhe está a pedir que faça. Como disse João Bilhim, o concurso público na prática serve para escolher os melhores de entre aqueles que merecem confiança política. Não vale a pena torturar assim o concurso público.
Mais vale assumir a nomeação com controlo da Cresap e do Parlamento (mesmo que sem confirmação por voto dos deputados).