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reminiscências de bagdad em 2003 -- porque me apeteceu



O medo é menos forte que a liberdade




Bagdad faz lembrar Lisboa. Era o que dizia um notório jornalista americano de origem inglesa, Cristopher Hitchens, na edição de Outubro da Vanity Fair. O que assim o inspirava não seria decerto a arquitectura nem a luz nem o desenho dos rostos, nem sequer o fatalismo. Não: Bagdad, o Iraque, lembram-lhe a Lisboa e o Portugal pós-25 de Abril. O caos da liberdade por estrear, a aprendizagem dos novos códigos, o despertar de mil e um partidos, a descoberta de um país outro, secreto, efervescente. Um país revelado na urgência das conversas, no desespero das confissões, na tortura da esperança. E neste tombar dos tabus que aqui como na Lisboa de1974 carreia multidões para cinemas onde as montras acenam corpos rasurados em acrescentos naïf, aqui uns seios cobertosa riscos azuis, ali umas coxas quadriculadas a escarlate. Como se uma criança municiada de canetas de feltro se tivesse assim esmerado, exponenciando o apelo à medidado paradoxo, num hiper-irónico strip-tease de pudor. Quase uma intervenção de arte contemporânea.



Não sei se era assim em Lisboa, mas duvido – e decerto não seria, mesmo no calor mais brasa do Verão bombista de 75 ou na histeria paroquial que nos oitentas acolheu o iconoclasta Je vous salue Marie de Jean Luc Godard, como aqui o chorrilho de ameaças que sobre estas “indecências” se abate. Ramid Al-Alzaya, 35 anos, dono do cinema Al Sadoun, na rua do mesmo nome, já teve deparar uns tempos com os pulposos reclames e a não menos escandalosa sessão das duas em que, garante o meu guia, as mãos dos espectadores seguem ritmadas a acção, hoje protagonizada por uma Sónia Braga impossivelmente nova e previsivelmente livre de preconceitos. “Só voltei a passar estesfilmeshá duas semanas, parei durante dois meses por causa das ameaças de bomba.” Papéis colados na porta, avisos sem assinatura. Mas Ramid não tem dúvidas: “São os grupos religiosos.”



Mesmo com revistas mais ou menos completas à entrada e dois guarda-costas, um dos quais a garantir que nos últimos tempos, sinal da escalada de violência na cidade, o número de armas apreendidas tem aumentado, Ramid e o seu cinema surgem como alvos fáceis — qualquer carro armadilhado, na mais pura tradição destas bandas, arrebanhará de uma assentada o comerciante de imagens e as transviadas ovelhas mais a evidência do pecado, emprestando um novo significado à expressão “bomba sexual”. Mas contra o mural de Schwarzie, confortado pelos músculos do exterminador-governador da Califórnia, Ramid faz peito ao momento. “Não, não tenho medo. Embora saiba que estas ameaças são para levar a sério. Mas é o meu trabalho, vivo disto. E as pessoas querem ver estes filmes.” As pessoas, quer dizer, emenda ele, os homens. As mulheres não vêm aqui porque, explica, “têm medo de ser atacadas”. Num país no qual um ombro é cena eventualmente chocante, onde grande parte das representantes do sexo feminino se cobrem de véus negros dos pés à cabeça e todas, mesmo as estrangeiras, se obrigam a trajes “modestos” sob pena de desacato — diz a Organização de Libertação das Mulheres Iraquianas que nos últimos meses as violações e os raptos têm sido às centenas —, difícil imaginar uma mulher a franquear estas portas por outra razão que não a que aqui me trouxe. Mas, mesmo que tal suceda, não iria longe: os mil dinares da entrada só se cobram a machos adultos. Fêmeas, crianças e jovens, garante, estão fora. É assim que Ramid, ele que afirma desprezar este “tipo de filmes”, exibindo-os apenas em mando da economia de mercado, honra as suas obrigações morais: “Sou religioso. Muçulmano, claro.”



Não há nada de claro ou sequer de evidente nisso. Não só existem no Iraque adeptos de outros deuses, como os cristãos, com os seus templos próprios — havia até um cardeal católico, morto durante a guerra (mas não por causa dela) — como há até ateus, embora seja quase um crime admiti-lo, quanto mais proclamá-lo. E seja como for Ramid já tem problemas que lhe cheguem. Além dos fundamentalistas e das suas juras de sangue, dos dilemas morais e do clima geral de insegurança, há as parabólicas que como marcos extraterrestres juncam os passeios, numa oferenda à desenlaçada curiosidade de um povo que viveu décadas de black-out. Quanto tempo até que os iraquianos se fartem dos sex movies, quanto tempo até que percebam que pernas e mamas se servem à farta nos canais do mundo? Quanto tempo até que nas ruas os véus dêem lugar a outras paisagens e as mulheres recuperem o direito à mini-saia, perdido desde que, nos seus últimos dez anos, Saddam se dedicou a flirtar com o fundamentalismo religioso?



O dono da salaAl-Sadoun abana a cabeça. “Isto não vai durar, é assim em todo o lado. Sempre o mesmo: primeiro um grande entusiasmo com o que não se conhece, com o que nunca se viu, e depois as pessoas fartam-se.” Passada então esta fase de educação acelerada para o sexo, poderá fazer o gosto ao olho e passar os seus favoritos. Filmes de acção, evidentemente, ou não fosse Arnold o herói escolhido para abrilhantar a sala, um Arnold que na sua pose bélica, de metralhadora em punho e rosto de cyborg, surge como repto tão— ou mais — perigoso a alguns sectores desta sociedade como as mulheres semi-nuas que o ladeiam. Um all-american Arnold que aqui, nesta Bagdad transformada em filme de acção, não podia estar mais em casa. “É, temos armas, tanques, ladrões, explosões, tiros, perseguições, tudo”, comenta Ramid, risonho. “Só falta uma coisa: saber onde andam os bons”. Dentro da pequena bilheteira que lhe serve de sala de visitas, o empresário fica sério. “Devem estar em algum lado. Não sei é onde.”



What if it works? (“E se resultar?”), perguntava Christopher Hitchens no final do seu artigo sobre o Iraque ocupado, ele que o conheceu antes e sabe aferir das diferenças, dosear o seu paradigmático cepticismo face ao milagre da liberdade. Ninguém sabe realmente responder a essa pergunta, sobretudo agora, que não passa um dia sem uma baixa no exército ocupante e até aosportugueses já couberam estilhaços do conflito. Mas seja o que for o futuro, este momento em que o medo foi menos forte que a liberdade aconteceu. E Ramid Al-Alzaya, o homem que passa filmes eróticos, foi um dos seus improváveis heróis.



.......






Não, o novo Iraque não passa só por bandidagem, atentados suicidas, guerras santas e a já clássica incursão pelo porno e outras áreas ditas “desviantes”, como a prostituição, o álcool e demais substâncias estupefaccientes e psicotrópicas. As leis de um mercado aberto, sem restrições ideológicas, também se sentem nas matérias consideradas mais nobres, como os livros. Na feira dos ditos que ocorre todas as sextas à rua Mutanabi, na zona mais antiga de Bagdad, pode agora, como reitera o feirante Muhy Hidon, “vender-se de tudo: livros de religião, sobre comunismo, romances eróticos…” É uma das grandes conquistas da liberdade, diz este homem expressivo, de 51 anos, em tempos empregado num centro de computadores e a viver disto desde que esse emprego se foi.



Na sua banca — um pano estendido no chão com um amontoado de coisas de ler — há desde revistas Time sortidas, uma delas com George W. Bush na capa, a tratados sobre o xiita Khomeini, passando por romances alemães e indecifráveis volumes árabes. Não vende mapas nem posters de mártires e homens santos, como muitos dos seus concorrentes, que amontoam Al-Hakims (líder xiita assassinado em Najaf, a 28 de Agosto) ao lado dos rostos e corpos pulposos das protagonistas de revistas eróticas como se tal heresia não lhes pudesse, nestes tempos exacerbados, valer uma facada ou um tiro na cabeça. O facto é que nesta rua particularmente suja — e sujíssimo aqui é um superlativo sem grande significado — entre esta multidão que se cruza lenta ao ritmo do chão e das suas oferendas, é inevitável esquecer que se está no centro de uma guerra, de um país ocupado. É inevitável perceber que longe do estereótipo nauseante, histérico, dos telejornais de bombas e escaramuças, longe do país de gente ignara e alienígena das ideias feitas, é outro que aqui, como nas galerias de arte, nos claros cafés onde se reunem pensadores ou nas universidades, se revela.



Um país perigoso, claro, onde se pode morrer só por estar no sítio errado na hora errada, para expiar culpas alheias ou as próprias (talvez, como diz outro duro de Hollywood, não Schwarzenegger mas Eastwood, não haja inocentes, nesta como em nenhuma história).


Um país paradoxal, onde um pintor como Waleed Sheet, considerado um dos melhores contemporâneos iraquianos, pode dizer que tanto lhe faz, Saddam, a América ou outra coisa qualquer, desde que os pincéis e as tintas à venda sejam de qualidade, ele possa pintar e haja quem compre o seu trabalho a preços decentes. Porque, garante ele, o importante para o artista é a liberdade criativa, e mesmo com Saddam ele sentia-se livre de criar — tão livre que tinha murais nos aeroportos, e uma ala só para si no museu de Arte Contemporânea. “Não éramos perseguidos como artistas, embora não pudéssemos dizer o que pensávamos. Quando pinto faço o que quero e não me ralo.” Outros pensaram de modo diferente, concede, e estão agora de volta. “Encavalitados nos tanques”, comenta outro artista, o dono da galeria Hiwar, que em árabe significa “diálogo”, e que convocou uma reunião de compadres para discutir o assunto: neste país de mil guerras trava-se agora também mais esta, entre os artistas que ficaram e os que saíram, os que carregam a tarja de colaboracionistas e os que se exilaram, mesmo se este, Sheet, confessa ter estado preso por ter dito duas frases. “Duas frases!”, repete, a rir. “Toda a gente pensou que não voltava.”



Não, não é fácil entender este país. E, no entanto, às vezes é evidente, como quando Hidon interpela o mundo. “Não, os americanos não podem sair, têm de ficar, com as Nações Unidas. Precisamos de todos. Só podem partir quando a situação ficar estável, quando tivermos partidos organizados e eleições livres.”Atrás dos finos óculos o olhar inteligente brilha mais: “Esse vai ser um grande dia para mim, talvez o melhor da minha vida.”



Assentes todos os crimes, expiadas todas as faltas, essa seria a mais obscena: falhar esta esperança.



(publicado no final de 2003 na notícias magazine)


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