Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

jugular

a revolução à vista

Em 1993, passei uns meses em Boston, como bolseira da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Viver numa cidade estrangeira, nem que seja por pouco tempo, faz-nos reparar em coisas em que habitualmente não repararia. E deu-me para reparar na forma como a generalidade dos americanos se vestia. Em pleno Verão – a minha estada foi no Verão – as pessoas, independentemente da idade e do “posto”, usavam vestuário extremamente descontraído. Muitos homens de calções, toda a gente de t-shirt e ténis (a moda das havaianas, vulgo chinelos de meter no dedo, ainda não chegara) e aquela coisa extraordinária, que não observei em mais nenhum país do mundo, das trabalhadoras da Baixa, que vão para o emprego todas empiriquitadas de tailleur e quilos de laca e ténis de corrida, e mudam para saltos altos no escritório.

O conjunto era o de um povo que valoriza acima de tudo o conforto individual e não está demasiado preocupado com o que “fica bem” – e se condescende na farpela exigida no escritório ou pelo cargo fá-lo com ostensiva condescendência, trocando as voltas ao ditado mal põe o pé na rua. Em contraste, no Portugal do início dos anos 90, ainda havia uma certa rigidez na aparência e um notório respeito pelas sacrossantas convenções, um “ser para fora” e um respeito pelas estratificações que se aferia nas reacções àquilo que saía da norma. A individualidade na roupa e no cabelo ainda era uma novidade, e os corpos tendiam a esconder-se. Barrigas à mostra, alças, troncos nus e chinelos ainda eram uma excepção, quase sempre conotada com juventude e turismo. Ténis na indumentária do emprego eram aceites em empresas particularmente “modernas” ou em actividades de “vanguarda”, ligadas à criação, como a publicidade. Um conjunto de “tomada de vistas” das principais cidades portuguesas no início dos anos 90 e na actualidade permitiria aferir o quanto Portugal mudou, só pela forma como as pessoas se vestem e como assumem o seu corpo.

Do país provinciano, timorato, envergonhado e pudibundo que éramos para a descontracção de hoje não mudou só a aparência, decerto. Há uma libertação e uma assunção de si e do direito a uma certa expressão e diferenciação (mesmo que essa diferenciação se exprima, no fim das contas, como uniformização) que traduz um certo sacudir do velho sistema autoritário. Nas empresas, a necessidade que alguns administradores encontraram de impor códigos vestimentares – com relevo para a proibição de ténis, chinelos, t-shirts e jeans e a imposição de gravata – é o testemunho desta espécie de revolução doce que foi sacudindo o jugo das convenções exteriores de seriedade, respeitabilidade e “bem parecer”. A ideia de que cada um vale por si, sem necessitar de um envelope convencionado que o integre num grupo, classe ou género, vai fazendo o seu caminho; a ideia de que o corpo não é algo de que devamos envergonhar-nos ou que devamos disfarçar e homogeneizar num figurino imposto e banalizado mas sim parte integrante da nossa individualidade, sem cisões entre o eu-mental e o eu-físico, é todo um programa anti-tradição (e, como é óbvio, anti ditados religiosos), tão claramente  traduzido no passeio diário pelas ruas do país.

A gravata – esse extraordinário artefacto que desde o século XIX se foi impondo no vestuário masculino como indício e garante de autoridade, respeitabilidade, seriedade e virilidade, sem que alguém saiba explicar por que raio um lenço de seda de cor garrida amarrado ao pescoço surte tal alquimia – é, no mundo ocidental, o resquício persistente da massificação e do totalitarismo vestimentar, do medo de sair da norma, da obediência cega à convenção. É já o único, e começa a balançar no seu domínio, numa derrocada a que não é estranho o assalto das mulheres aos lugares dos engravatados. Que se desengane, pois, quem acha que não há nada de profundo nas aparências – está lá tudo.

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 7 de setembro)

21 comentários

Comentar post

Pág. 1/3

Arquivo

Isabel Moreira

Ana Vidigal
Irene Pimentel
Miguel Vale de Almeida

Rogério da Costa Pereira

Rui Herbon


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes

  • Anónimo

    The times they are a-changin’. Como sempre …

  • Anónimo

    De facto vivemos tempos curiosos, onde supostament...

  • Anónimo

    De acordo, muito bem escrito.

  • Manuel Dias

    Temos de perguntar porque as autocracias estão ...

  • Anónimo

    aaaaaaaaaaaaAcho que para o bem ou para o mal o po...

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2013
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2012
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2011
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2010
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2009
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2008
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2007
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D

Links

blogs

media