amigos pessoais e assim
Há expressões com a capacidade infecciosa do mais malvado dos vírus. Com a agravante de não haver vacina conhecida nem ninguém a trabalhar para a sintetizar. Uma pessoa julga estar-lhes imune, capaz de lhes resistir e até de as combater pelo bom exemplo, e eis que de súbito lhe sai da boca para fora, como numa espécie de possessão maligna, uma frase do tipo “Eu, pessoalmente...”
Ora vamos lá a ver. Há alguma hipótese de “Eu, impessoalmente”, fazer sentido? Alguém imagina uma expressão impessoal de ideias, sentimentos ou sensações? Não, pois não? Pois é. Se calhar tem de se concluir que esta coisa de dizer “Eu, pessoalmente” é de uma idiotice sem nome. Diz-se uma coisa destas para ganhar tempo, para arredondar o “eu” (há esta ideia de o “eu” ser uma coisa que precisa de ser suavizada, tornada menos ostensiva), mas sobretudo, por se tê-la ouvido muitas vezes. Não só não significa nada e é paradoxal — a não ser que a entendamos como um reconhecimento implícito de que a maior parte das coisas que se dizem (opinam) não são mais que um papaguear sem nada pessoal -- como é uma expressão medonha. Mas as pessoas dizem-na, repetem-na, usam-na a torto e a direito e às tantas transforma-se num must linguístico. “Amigo pessoal” é outra bizarria. Vamos lá a ver: o que é que isto quererá dizer? Há amigos sem serem pessoais, ou seja, da pessoa? Há amigos impessoais? E se são impessoais, que raio de amigos são? Responder a estas perguntas pode revelar-se bem mais interessante que uma mera crítica da língua. Lembro-me de ter ouvido esta expressão pela primeira vez na década de 90. Julgo perceber que se trata de uma tradução do inglês “personal friend”. A coisa, obviamente, não muda do inglês para o português: esta ideia de que há amigos assim a modos que não amigos e outros que são mesmo amigos deixa a noção da amizade em muito maus lençóis. Ou melhor, revela quem usa a expressão – isto se entretanto ela não se tivesse popularizado a ponto de já não permitir qualquer conclusão. Diz-se “são amigos pessoais” de duas pessoas que são realmente amigas, certo? Sucede que toda a gente tem “amigos pessoais” em barda. E desde crianças que sabemos que amigos a sério é coisa para dois ou três e é se tivermos muita sorte. Mas adiante: sobram, portanto, os outros amigos. Os que vimos duas vezes na vida mas que nos sorriram e não nos mandaram a uma parte qualquer, os que nos fizeram um favor qualquer ou a quem fizemos um favor qualquer e de quem esperamos retribuição, aqueles ao lado de quem trabalhamos, aqueles com quem trocámos umas confidências ou fizemos um bom negócio, os com quem costumamos trocar fluidos... até aos amigos instantâneos que se fazem numa situação qualquer em que é preciso escolher lados ou acertar uma aliança transitória. Tanto amigo, caramba. Era preciso arranjar uma forma de diferenciar esta mole de gente dos dois ou três com que julgamos poder contar. Ou, para não sermos tão dramáticos, aqueles a casa de quem vamos, a quem contamos quase tudo, a quem pedimos conselhos e nos ombros de quem choramos (se chorarmos). Aqueles por quem supostamente seríamos capazes de quase tudo e sem os quais o mundo nos surgiria deserto, inabitável. Aqueles por mor de quem se cantavam as cantigas de amigo, na verdade cantigas de amor – porque, na verdade, uma e outra coisa se não distinguem assim tão bem. Queremos ter muitos amigos, claro – toda a gente, se possível, ou só a audiência do serão televisivo que nos ouve em confidência, num mergulho impossível na empatia global. Queremos que nos oiçam e às nossas opiniões “pessoais”. Precisamos de acrescentar o qualificativo como quem garante a qualidade do produto: pessoal como genuíno, como verdadeiro, como real – pessoal como certificado de existência. A nossa, afinal. Como se o adjectivo se transformasse em substância – nos transformasse. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 28 de setembro)

