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Algumas considerações para uso dos príncipes

texto do jurista Luís Duarte d’Almeida, autor de um dos pareceres juntos ao recurso das cidadãs teresa pires e helena paixão entregue no tribunal constitucional (a solicitar apreciação sobre a constitucionalidade do seu impedimento de casar). No próximo dia 10 de Outubro a Assembleia da República terá de decidir uma questão muito simples. Há no Código Civil algumas normas inconstitucionais, discriminatórias, e atentatórias da dignidade de muitos cidadãos. Deve essa inconstitucionalidade ser suprimida? Ou deve a Assembleia da República, ao invés, votar contra a Constituição, e decidir que essas normas continuem em vigor?

 

Os parlamentares de diversos partidos que nos últimos dias opinaram sobre o tema não desconhecem a simplicidade da questão, e sabem bem que não há senão uma resposta correcta. Escutámos, é certo, as parvulezas de Diogo Feio sobre as “opções de vida de cada um”; soubemos que para Manuel Alegre estas questiúnculas “fracturantes” do combate à discriminação não entram no catálogo dos “grandes” assuntos; aturámos a Alberto Martins afirmações mendazes e auto‑contraditórias sobre a “legitimidade eleitoral” e o “mandato” do Partido Socialista; e aprendemos com o PSD que as questões de constitucionalidade se devem resolver por referendo. Mas estas declarações só à primeira vista incidem sobre o que está agendado para decisão no dia 10: na realidade, não passam de manobras de desconversa que cuidadosamente evitam o fundo da questão.

 

Isto só surpreende os ingénuos.

Nenhum português lúcido espera de um deputado que oriente as suas palavras e acções por preocupações com o interesse comum. Que importará aos senhores deputados que na Constituição se mande pôr fim à discriminação de casais de pessoas do mesmo sexo? Obviamente, nada. E alguém crê em que os parlamentares se apoquentem com a discriminação sofrida, por causa da lei, por quem integra uniões do mesmo sexo? No Parlamento, o sentido de voto rege-se, sobretudo, por considerações eleitoralistas, destinadas a cativar ou não alienar partes do eleitorado, e a manter ou alcançar cargos de poder nacional e local — motivos semelhantes, aliás (alguém duvidará?), aos que levaram o Bloco de Esquerda e os Verdes a agendar agora para debate dois projectos datados de 2006.

 

Apesar das contrariedades e das consequências, os defensores da igualdade no acesso ao casamento vêm mostrando que a lei civil é inconstitucional, e ainda ninguém foi capaz de rebater os argumentos apresentados. Isto não admira, porque a questão jurídica não é controversa. No diálogo com os senhores deputados, porém, os argumentos jurídicos são baldados: é necessário falar-lhes ao instinto de sobrevivência, antes que ao juramento de cargo.

 

Não faltam, contudo, razões desse outro teor para que os deputados socialistas se decidam a pôr fim à discriminação de casais homossexuais. Aquele extraordinário pré‑anúncio de um disciplinado voto “contra” que há dias foi notícia é sinal de que o PS anda minguado de bons estrategas. Eis, por isso, e à consideração dos senhores deputados socialistas, uma pequena amostra de boas razões para — mudando de “disciplina”, para o que ainda vão a tempo — aprovarem a alteração da lei civil.

 

A ideia do adiamento para a próxima legislatura não era péssima: enquanto foi possível, não comprometia o partido, e permitia o prolongamento indefinido do silêncio. Mas com o agendamento do debate passou a ser necessário explicitar uma posição. O que agora deve interessar aos parlamentares socialistas é cotejar os custos políticos de um voto contra (ou até de uma abstenção) e os de um voto favorável.

 

Antes de mais, convém recordar aos senhores deputados que serão sempre nulos os efeitos eleitorais imediatos da decisão que venham a tomar. Em geral, os eleitores não terão particularmente presente, nas próximas legislativas, que os socialistas tenham votado contra ou a favor do fim da desigualdade no acesso ao casamento civil. O que se passa não é que o tema não seja “importante”: sucede apenas que é sempre curtíssima a memória de curto prazo relativamente aos factos de que se compõe o quotidiano da “política”. Tirando, é claro, aqueles que são directamente afectados pelo voto contra, e que são decerto mais do que poderá à primeira vista parecer. Conviria talvez ao P.S. refazer os cálculos.

 

Mas há pelo menos três factores gerais que os socialistas devem ponderar bem antes de decidirem o sentido do seu voto.

 

Primeiro: há já um ano que o Tribunal Constitucional anda opilado, precisamente, com a questão da inconstitucionalidade destas normas da lei civil. O Tribunal não quis ainda pronunciar-se, e talvez receie ferir-se em algum dos pontiagudos vértices do tema. Ora a eliminação pela Assembleia da República das normas inconstitucionais libertaria os senhores conselheiros de tão espinhoso ónus. Como bem percebe qualquer pessoa que saiba como se decide no Palácio Ratton, este factor não é despiciendo.

 

Em segundo lugar, o facto de a memória imediata, em política, ser curta não impede que, a médio e a longo prazos, a história vá sempre seleccionando, para registo e lembrança, os momentos fulcrais da vida das instituições. E quererá mesmo o Partido Socialista inscrever na sua história o opróbrio inapagável de ter expressamente votado contra, e impedido, o fim da discriminação de casais do mesmo sexo, e num momento em que detinha o poder e uma maioria absoluta?

 

Por último, ninguém ignora que Espanha pôs fim a uma discriminação semelhante. No imaginário popular português de hoje, Espanha surge como um espaço de progresso, de modernidade, de futuro, de ar fresco — de Europa. Pois bem: um voto socialista favorável no próximo dia 10 produziria, à nossa escala, efeitos simbólicos comparáveis; seria uma forma simples (e uma das poucas viáveis) de fazermos como fazem os países modernos; seria, à falta de progresso verdadeiro, um arremedo de progresso. Haverá melhor propaganda, e mais barata?

 

Eis várias razões por que os deputados socialistas devem votar a favor do fim da discriminação de casais homossexuais. Quanto ao facto de que essa decisão trará benefícios a muitos cidadãos portugueses, ajudando a pôr termo a situações de sofrimento e humilhação — encarem-no (por que não?) como bónus

 

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