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A merdatização da Justiça

Em meados dos anos 90, não consigo precisar exactamente em que circunstâncias de tempo e espaço, Vera Jardim advertia que “A justiça Penal sente cada vez mais dificuldades em manter uma equilibrada convivência com as exigências de uma sociedade de informação, que, a todo transe tende a impor as suas regras de imediatismo e transparência”. Referia-se à hoje cada vez mais indisciplinada relação entre a Justiça e a Comunicação Social.
Desde então para cá, nada se fez no sentido de disciplinar o que já na altura começava a escoicear. Agora, apesar de para estas coisas nunca ser tarde, qualquer medida que se tome será sempre extemporânea para os que já sofreram na pele os resultados do actual estado de é fartar vilanagem, quanto mais não seja pela óbvia inexistência de efeitos retroactivos que permitam evitar, ou ao menos dificultar, a criação de situações de tal modo injustas que, em relação a elas, a justiça cível não passará nunca de insosso e pouco adequado paliativo.
Ainda assim, urge, com efeito, e para regular no futuro, tentar encontrar um ponto de equilíbrio que garanta aos meios de comunicação social o direito à informação sem que se permita a ofensa de direitos fundamentais do cidadão e em especial dos arguidos – assim evitando que a justiça desça à rua, em corrida tonta em direcção ao auto de fé mais próximo.
Sucede que, a principal culpada desta dificuldade de relacionamento é a própria forma como a justiça e os media lidam com a informação, quer numa perspectiva meramente interna, quer numa perspectiva de comunicação com o exterior.
Efectivamente, por vocação, a Justiça tem características egocêntricas de informação, vê a informação numa perspectiva unidireccional; a linguagem assume carácter de coisa secreta, oculta, estranha e misteriosa; é puramente esotérica, reservada aos magistrados, aos advogados, aos oficiais de Justiça e a meia dúzia de curiosos, engenheiros de um outro qualquer ofício. Mais grave, não só assume este carácter como tenta fazer dele uma escola, cultivando uma política de temor reverencial que mais não serve que para esconder as suas próprias fraquezas. Além do mais, qualquer tipo de informação é veiculada em tempo virtual, não no sentido moderno e actual do termo, mas no sentido de distante do real.
Ao contrário, os media tendem para uma comunicação em tempo real, antecipando-se por vezes à própria realidade e, não poucas vezes, desvendando factos que a Justiça não alcança por si.
Todos estes dados colocam a Justiça numa situação deveras complicada que é a de se adaptar a este ambiente ou a de entrar em rota de colisão com ele.
Por todos estes motivos, mas acima de tudo porque vivemos na sociedade do "é para ontem", do consumismo desenfreado de tudo o que é novo, a comunicação social vem, cada vez mais, assumindo um papel substitutivo da própria Justiça, de ingerência no seu funcionamento, rejeitando um papel passivo de mero relator (impropriamente, a função que a comunicação social parece não cumprir é aquela que se afigura mais importante, a função pedagógica, e para a qual aparece colocada em posição privilegiada).
E é aqui que a porca torce o rabo. Com efeito, se é certo que o direito à informação deve ser assegurado, é igualmente verdade que não pode ser exercido sem restrições ou censuras, ofendendo o direito, também ele constitucionalmente tutelado, à reserva da vida privada, ao bom-nome. À honra, afinal. A ceder um dos direitos, tem sempre de ceder o primeiro. Como se faz tal coisa?
Legislando bem e sem medos. Regulamentando exaustivamente a letra morta que é o principio da concordância prática, alterando novamente os Códigos Penal e de Processo Penal, criando regras claras de diálogo entre a justiça e a comunicação social, e responsabilizando esta última pela violação de tais regras, que têm que ser claras, impondo cominações de tal forma duras que possam pesar de forma significativa no bolso de quem faz as contas antes de se esticar, de quem se gaba do vasto rol de condenações por abuso de liberdade de imprensa, como se de uma medalha se tratasse.
Outro bom caminho seria incutir algum bom senso nas cabeças dos agentes judiciários e, neste particular, de alguns advogados que, por vezes, sedentos de protagonismo, se atiram, literalmente, de encontro às câmaras de TV dando entrevistas que em nada abonam a classe e, mais grave, prejudicam o próprio constituinte, expondo desnecessariamente a sua imagem – a contrario, não posso olvidar a excelente defesa que Proença de Carvalho fez no caso dos hemofílicos, em que se viu obrigado a publicar um livro, tal era a torrente de informação prejudicial que todos os dias assaltava o quiosque.
A propósito, as sábias palavras as de António Arnaut: "A intromissão da comunicação social no quotidiano forense, se teve a virtude de dessacralizar os tribunais, oferece o grande perigo de perturbar a boa administração da Justiça. Que a imprensa, a rádio e a televisão cumpram o seu dever. Mas que não lhes seja permitido, sobretudo com a conivência dos Advogados, transformar as audiências num banal espectáculo mediático e, muito menos, num circo em que os arguidos, ou até as testemunhas, fazem o papel das feras para gáudio dos espectadores famintos de sensacionalismo. (...) Este verdadeiro assédio dos mass media e, em particular das televisões, só foi possível com a complacência de juízes e advogados, desejosos de assumirem certo vedetismo, ao verem as suas figuras aparecerem nas pantalhas televisivas. A vaidade é sempre má conselheira, especialmente para os profissionais do foro...".
E a verdade também é esta, por mais que as televisões se intrometessem, por mais que o público se pusesse em bicos dos pés, alguns dos males seriam por certo atenuados se magistrados e advogados assumissem o seu papel de guardiães do decoro que deve rodear tudo o que envolva a função judicial, tentando, uns e outros, não fomentar velhas guerras que em tempos idos deram origem a maravilhosas dissertações com ainda mais maravilhosos títulos – como sejam "Eles, Os Juízes Vistos Por Nós, Os Advogados", por Piero Calamandrei, "De Como Os Juízes Não Podem Ser Deuses Nem Os Advogados Anjos", por Miguel Veiga, "Vil Perseguição A Um Advogado Por Um Delegado Do Ministério Público", por José Joaquim Abreu.
Assim não sendo, que não é, com a comunicação social a fazer aquilo que diz ser o seu papel, doa a quem doer, coisa de somenos, com o compadrio de todos os que se deviam intrometer, grão a grão se vão constituindo verdadeiras penas acessórias para os arguidos que, culpados ou inocentes, venha a justiça a decidir o que seja, serão sempre apontados a dedo como criminosos, marcados que foram a fogo pelo ferro dos medíocres, dos que fazem da inveja a religião nacional com mais seguidores.

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