Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

jugular

2008, Ano Internacional da Batata

Desidério Murcho parece ignorar (ler aqui) a diferença entre língua e ortografia, o que lhe permite investir contra aquilo que designa como tentativa de "legislar sobre a língua" a propósito do acordo ortográfico luso-brasileiro.

E, todavia, basta pensar um bocadinho para entender que nenhuma convenção ortográfica altera sequer o modo como as pessoas pronunciam as palavras, quanto mais a língua que elas falam. Se assim não fosse, elefante teria de escrever-se "ilfant"; Setúbal, "Stúbol"; e Portugal, "Pretegól".

Como seria de esperar, Desidério believes they order these things better in England: "Não há tal coisa [leis sobre a ortografia], tanto quanto sei, nos países de língua inglesa; e no entanto os livros americanos e ingleses circulam entre os dois países sem dificuldades". Sabe mal, pelo menos em relação à segunda parte da sentença, dado que as obras de autores ingleses, sobretudo ficcionistas, sofrem alterações significativas quando são editadas nos EUA, o que até tem dado lugar a conflitos entre escritores e editoras em certos casos em que as correcções foram muito para além da mera grafia, afectando inclusive a construção das frases.

Mas, sobretudo, Desidério não tem em conta que o mundo de língua inglesa não é esmagadoramente dominado pelos americanos do mesmo modo que o de língua portuguesa o é pelos brasileiros. Ora é essa a raiz do problema que o acordo ortográfico visa resolver.

Desidério, que manifestamente nunca se debruçou a sério sobre o tema, alvitra que a melhor maneira de conseguir a uniformidade ortográfica - à qual, presumo, reconhecerá alguma utilidade - é deixar que ela se inspire nos "dicionários, gramáticas, enciclopédias e outras obras de consulta, além da escrita académica em geral e também da popular, como é o caso dos jornais."

Não fica claro que espécie de mecanismo de selecção impedirá que um dicionário opte por "elefante" e outro por "ilfant", dado que se trata de uma mera convenção, mas a questão central nem é essa.

Desidério Murcho parece ignorar que na generalidade dos países, e também em Portugal, a normalização da ortografia tem estado a cargo de instituições da sociedade civil aptas para tal, por regra Academias das Artes ou das Ciências, e que os Estados se têm limitado a sancionar essas orientações tendo em vista o seu ensino nas escolas e a sua aplicação em documentos oficiais. Como a leitura dos nossos jornais diariamente o comprova, ninguém vai preso pela prática reiterada de erros de ortografia - embora às vezes cheguemos a perguntar-nos se a pena de morte não deveria ser prevista em certas situações particulares.

Em Portugal, a única vez em que o Estado tomou a iniciativa de intervir directamente na fixação da norma ortográfica, nomeando especialmente uma comissão para o efeito, foi, creio eu, em 1911. De resto, a regra tem sido deixar o assunto a cargo da Academia das Ciências de Lisboa, a qual por sua vez discute desde 1980 com a Academia Brasileira de Letras (retomando, aliás, uma tradição já antiga) os termos de uma possível uniformização válida em todo o mundo de língua portuguesa.

Os Estados português e brasileiro só são chamados a intervir no processo para sancionarem os termos do acordo conseguido.

Suspeito que Desidério Murcho não sabe nada disto. Ele coloca-se na posição do mero técnico de ideias gerais, e a ideia geral que, neste como noutros casos, tem para nos propor é esta:
"A discussão sobre o acordo ortográfico não deve abordar exclusivamente a questão de saber se é linguisticamente acertado ou comercialmente vantajoso. Deve abordar também a questão mais fundamental de saber que tipo de sociedade queremos ser: uma sociedade que preza a liberdade, ou uma sociedade centralista, sufocada por leis sem as quais a vida não seria previsivelmente pior."

Este é precisamente o tipo de abordagem doutrinária que dá má fama ao liberalismo, uma ideia de grande valor que, pela minha parte, não estou disposto a abandonar a quem dela faz tão mau uso.

O autor da citação afirma que sem o acordo "a vida não seria previsivelmente pior", mas recusa-se a ponderar as vantagens e as desvantagens linguísticas e comerciais do acordo. Como pode ele então estar tão certo de que a ausência do acordo não afectará negativamente as nossas vidas?

Não sabe, evidentemente, nem está interessado em saber, porque toda a sua argumentação parte do dogma indiscutível segundo o qual a uniformização ortográfica destrói a liberdade. Retire-se esse postulado insensato, e não fica nada.

17 comentários

Comentar post

Pág. 1/2

Arquivo

Isabel Moreira

Ana Vidigal
Irene Pimentel
Miguel Vale de Almeida

Rogério da Costa Pereira

Rui Herbon


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes

  • f.

    olá. pode usar o endereço fernandacanciodn@gmail.c...

  • Anónimo

    Cara Fernanda Câncio, boa tarde.Poderia ter a gent...

  • Fazem me rir

    So em Portugal para condenarem um artista por uma ...

  • Anónimo

    Gostava que parasses de ter opinião pública porque...

  • Anónimo

    Inadmissível a mensagem do vídeo. Retrocedeu na hi...

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2008
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2007
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D

Links

blogs

media