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Leis da Blasfémia: Ain’t Necessarily So*

Em 5 de Março deste ano,  a Câmara dos Lordes aprovou a abolição da anacrónica lei de sabor medieval que criminalizava a blasfémia no Reino Unido. O último prego no caixão da lei da blasfémia foi colocado pouco depois por Sir Ian McKellen que leu num evento organizado pela National Secular Society a última obra a ser condenada por blasfémia em terras de Sua Majestade.

O poema de James Kirkup The Love that Dares to Speak its Name foi publicado nos anos setenta na Gay News. O  editor da revista foi condenado a 9 meses de prisão  por blasfémia e a obra foi banida. Mas não são apenas obras escritas que mereceram a fúria e acusações de blasfémia por parte da comunidade cristã britânica. Por exemplo, o director da BBC  escapou por pouco a uma condenação por ter autorizado a transmissão de uma gravação do espectáculo Jerry Springer the Opera.

Quiçá o exemplo mais divertido do furor anti-«blasfemo» seja A vida de Brian dos Monty Python,  considerada a melhor comédia de sempre pelo Channel4 da BBC em 2006 e pelo Guardian em 2007.  Quase trinta anos após o lançamento, a conseguida sátira ao fanatismo religioso, cuja exibição pública foi proibida em muitos países  e em algumas zonas do Reino Unido - o que contribuiu para a sua entronização como filme de culto -, continua proibida em alguns locais, nomeadamente na cidade galesa de Aberystwyth, cuja presidente de câmara é ... Sue Jones-Davies, que participou no filme na pele de Judith Iscariot.

Infelizmente, as leis da blasfémia estão a ser ressuscitadas um pouco por todo o lado, nomeadamente há cerca de dois anos, sem fanfarras nem grandes anúncios públicos, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou uma moção genérica de combate ao terrorismo global, em que se inclui uma frase defendendo a tomada de medidas contra «a difamação das religiões». Isto é, a ONU exortou os estados membro à criação de leis punindo a «blasfémia».

Parece que um dos países em que este apelo fez eco foi a  Holanda, um dos poucos países a permitir a exibição do Salve Maria de Jean-Luc Godard e que se orgulha(va) da sua longa tradição de tolerância e liberdade de expressão. Os acesos debates e as queixas de perseguição por parte das organizações islâmicas que se seguiram ao assassínio em 2004 de Theo van Gogh foram acompanhados de pedidos para que a lei da blasfémia fosse endurecida. A rejeição por parte da opinião pública desta possibilidade resultou há dias na abolição da lei da blasfémia, o que seria uma excelente notícia não fora o caso de as autoridades pretenderem agora alargar à religião as leis anti-discriminação. Ou seja, o parlamento holandês pretende equiparar crenças a pessoas e criminalizar os insultos indirectos, o que quer que isto seja, a crenças.

Mais concretamente, como refere The Mediawatchwatch, o que resultará se estas intenções forem concretizadas  será ainda pior que a lei da blasfémia agora abolida:

The intention is to introduce the concept of “indirect insult” and expand an existing law which protects people on the basis of race, age, disability, and sexual orientation to include protection on the basis of religion or “conviction”. This means that remarks directed at Islam, Christianity, Buddhism or — depending on your interpretation of “conviction” — even homeopathy and astrology, could be interpreted as indirect insults to people, and prosecuted as such.

According to a commenter on the original story, this law carries a maximum sentence of 12 months, whereas the original defunct blasphemy law carried a maximum 3 month sentence.

Como escrevia há uns tempos o Desidério, «um louco também tem sentimentos, igualmente reais enquanto sentimentos, relativamente ao fantasma do Napoleão, que o acompanha sempre e lhe sussurra segredos ao ouvido». Será  considerado um insulto indirecto às profundas convicções dum paciente recalcitrante o diagnóstico de um psiquiatra? De facto, qualquer um se  pode considerar «insultado» nas suas convicções/crenças mais profundas mesmo que estas crenças sejam óbvias patetices, como é o caso das mencionadas homeopatetices e astrologia a que acrescento outras banhas da cobra como o espiritismo que acende neste momento o espaço de debate do outro blog onde colaboro. É caso para recordar que é fraca a crença que tem de ser protegida juridicamente de ideias contrárias, pois se fosse forte não necessitaria de exigir a quem não a partilha que se abstenha de a criticar.

 

Pessoalmente, tenho tanto interesse em insultar o Deus ou Deuses de quem quer que seja como o Unicórnio Cor-de-Rosa Invisível,  Xenu ou o Monstro do Esparguete Voador. Porém, reservo-me o direito de criticar e descascar todas as crenças que insultam a minha inteligência - o que faço regularmente no De Rerum Natura em relação a charlatanices, pseudo-ciências e delírios New Age sortidos, à sanha anti-psiquiatria da cientologia ou ao criacionismo cristão ou islâmico - , que insultam as mulheres ou as minorias comportamentais (é desnecessário apresentar exemplos…), quando insultam os descrentes por o serem ou os políticos por um laicismo desenfreado e por não imporem  na letra da lei as crenças respectivas.

Por exemplo, podemos apenas imaginar o que uma lei semelhante provocaria na vizinha Espanha, onde os clérigos espanhóis pretendem, por exemplo, que ensinar a constituição aos alunos e elucidá-los nos direitos que todos os cidadãos espanhóis detêm à sua luz é «um ataque frontal à religião católica. Uma verdadeira guerra escolástica... e parte de uma clara perseguição, a pouco e pouco, à fé católica». Ou seja, os mais devotos em Espanha sentem-se muito ofendidos nas suas convicções pela disciplina de educação cívica, tão ofendidos quanto em relação à lei do aborto, ao casamento homossexual, à educação sexual ou à não obrigatoriedade do ensino da moral e religião católicas a todos.

Considerando que tudo e mais umas botas é passível de ser tido por alguém como ofensa inadmíssivel às suas crenças, se esta proposta for transcrita na letra da lei e aplicada, os próximos tempos serão na Holanda palco de testes repetidos à Declaração Universal dos Direitos do Homem, ou seja, aos valores civilizacionais que supostamente se pretende defender com a contemporização com as religiões, que ironica e paradoxalmente pode ser um tiro no pé para estas.
Na realidade, a ideia de limitar a crítica da religião é contraproducente para a própria religião como o que aconteceu há dois anos em Inglaterra mostra claramente.  Em 2006, mais de 100 igrejas e denominações cristãs inglesas protestaram ser um atentado contra a sua liberdade religiosa a legislação aprovada na Câmara dos Comuns - que criminalizava o incitamento ao ódio por motivos religiosos -, ao mesmo tempo que protestavam e tentavam boicotar a digressão do espectáculo Jerry Springer: The Opera.

De facto, ninguém é mais anti-religião (dos outros) do que um religioso fanático. Os cristãos ingleses clamaram contra a legislação, que definia ódio religioso como «ódio contra um grupo de pessoas definidas em relação a uma crença religiosa ou ausência de crença religiosa», porque temiam que a legislação em causa ilegalizasse muitas expressões religiosas. Como todas as religiões e variantes dentro da mesma religião se reclamam a única verdadeira, as mais viperinas manifestações de ódio religioso verificam-se nos púlpitos, onde os prelados das várias religiões atacam e denigrem não só o ateísmo como as «falsas» religiões. Ou seja, toda e qualquer homilia pode ser considerada um insulto e um ataque às convicções de quem não partilha a fé do orador.

Criticar as religiões, mesmo satirizá-las, é exercer a nossa liberdade de expressão. Legislar contra a blasfémia, directa ou indirectamente, é impedir a crítica daqueles que querem destruir essa e outras liberdades. Esta medida holandesa, a ir para a frente, indica também  a derrota de uma declaração que a ONU proclamou fará exactamente 60 anos amanhã, em particular dos seus artigos 18, 19 e 28.

 

*O tema «Ain’t Necessarily So», originalmente escrito por George e Ira Gerhswin em 1934 para a ópera «Porgy and Bess», foi banido de todas as estações de rádio nos Estados Unidos e Inglaterra pouco depois do seu lançamento. Embora não questionando directamente a existência de Deus, a canção desafiava a interpretação literal da Bíblia e era vista como um ataque aos criacionistas.

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