sra ministra, importa-se de esclarecer?
li este fim de semana que a ministra da saúde esteve em fátima, num encontro da pastoral da saúde, e anunciou qualquer coisa como 'o acordo com a pastoral/igreja católica sobre a assistência religiosa nos hospitais está quase pronto'. o meu queixo caiu . bom, exagero, na verdade não sou assim tão ingénua. mas gosto de fingir que sim -- e sobretudo não vejo motivos para ser sofisticada nesta matéria. é que nisto das leis, das constituições, e assim, só há que seguir o risco amarelo.
andamos nesta treta de conversa há anos -- desde a revisão da concordata, em 2004 -- e o estado português continua a fingir que não sabe ler.negociar 'acordos' com a igreja católica a que propósito? a concordata de 2004 só diz sobre esta matéria que o estado português se compromete a viabilizar a assistência religiosa católica nos hospitais. a lei da liberdade religiosa (de 2001) estatui que todos os pacientes/presos/militares devem poder ter acesso a assistência religiosa da sua confissão se a solicitarem e que a comissão da liberdade religiosa tem de dar parecer sobre as matérias que têm a ver com a lei em causa.
nada, absolutamente nada, na lei implica que haja 'negociações' com uma das confissões em detrimento das outras -- pelo contrário, naturalmente. o decreto-lei que está a fundamentar esta negociação, e que diz que a assistência religiosa nos hospitais deve ser organizada de acordo com a igreja católica, decorria da concordata extinta e portanto não pode ser honestamente invocado por qualquer das partes.
e se a lei não chega, é talvez conveniente lembrar ao governo que a assistência religiosa nos hospitais já foi objecto, nesta legislatura, de uma fita absolutamente vergonhosa protagonizada pelas altas instâncias da igreja católica a propósito do anterior projecto, em que o conhecimento privilegiado do documento permitiu aos bispos virem para a praça pública inventar histórias sobre o respectivo conteúdo, numa campanha terrorista contra a efectiva liberdade religiosa (chegaram a afirmar que a assistência religiosa nos hospitais ia ser impossível, só porque as outras confissões iam estar, pela primeira vez, em igualdade de ciscunstâncias, e se propunha desmantelar o corpo de capelães católicos residentes nos hospitais e pagos em exclusividade com o erário público) e batendo-se pela manutenção de um projecto anterior -- que lhes dava ainda mais dominância que aquela que actualmente detêm, criado uma espécie de bispo dos hospitais, à semelhança do existente bispo das forças armadas, com toda uma estrutura 'dirigente' para a assistência religiosa baseada na 'representatividade' e, naturalmente, generosamente paga pelos contribuintes -- , projecto esse que correia de campos teve o bom senso de mandar retirar, por ter constatado a sua inconstitucionalidade (ainda na sua recente entrevista a um semanário frisou que fora 'um erro dos serviços do ministério' ter elaborado o documento).
mas eis que em nome de uma qualquer noção de delicadeza (reverência é a palavra que ocorre) se volta a atraiçoar o espírito da constituição e da lei. aguarda-se com alguma impaciência, pois, o conhecimento do 'acordo'. e, já agora, que a comissão de liberdade religiosa, presidida por mário soares, lembre ao governo que existe, e que o anúncio público desta 'negociação' e de um 'acordo quase final', a ser verdadeiro, a faz passar por verbo de encher. é que, afinal, a comissão da liberdade religiosa é apenas a comissão criada para que as confissões minoritárias tenham voz e para que a liberdade religiosa seja sempre respeitada. e a última vez que olhei, a confissão católica não era oficial nem fora eleita para me representar.
concordata:
a república portuguesa garante à igreja católica o livre exercício da assistência religiosa católica às pessoas que, por motivo de internamento em estabelecimentos de saúde, de assistência, de educação ou similar, ou detenção em estabelecimento prisional ou similar, estejam impedidas de exercer, em condições normais, o direito de liberdade religiosa e assim o solicitem
lei de liberdade religiosa
Artigo 2.º - Princípio da igualdade
1 — Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, perseguido, privado de
qualquer direito ou isento de qualquer dever por causa das suas convicções ou prática
religiosa.
2 — O Estado não discriminará nenhuma igreja ou comunidade religiosa relativamente às
outras.
Artigo 3.º - Princípio da separação
As igrejas e demais comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua
organização e no exercício das suas funções e do culto.
Artigo 4.º - Princípio da não confessionalidade do Estado
1 — O Estado não adopta qualquer religião nem se pronuncia sobre questões religiosas.
Artigo 9.º - Conteúdo negativo da liberdade religiosa
1 — Ninguém pode:
a) Ser obrigado a professar uma crença religiosa, a praticar ou a assistir a actos de culto, a
receber assistência religiosa ou propaganda em matéria religiosa;
Artigo 13.º - Assistência religiosa em situações especiais
1 — A qualidade de membro das Forças Armadas, das forças de segurança ou de polícia, a
prestação de serviço militar ou de serviço cívico, o internamento em hospitais, asilos,
colégios, institutos ou estabelecimentos de saúde, de assistência, de educação ou similares, a
detenção em estabelecimento prisional ou outro lugar de detenção não impedem o exercício
da liberdade religiosa e, nomeadamente, do direito à assistência religiosa e à prática dos actos
de culto.
2 — As restrições imprescindíveis por razões funcionais ou de segurança só podem ser
impostas mediante audiência prévia, sempre que possível, do ministro do culto respectivo.
3 — O Estado, com respeito pelo princípio da separação e de acordo com o princípio da
cooperação, deverá criar as condições adequadas ao exercício da assistência religiosa nas
instituições públicas referidas no n.º 1.
constituição:
Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de
qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções
políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual
Artigo 41.º
(Liberdade de consciência, de religião e de culto)
1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.
2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por
causa das suas convicções ou prática religiosa.
3. Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática
religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser
prejudicado por se recusar a responder.
4. As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua
organização e no exercício das suas funções e do culto.
5. É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão,
bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas
actividades.
6. É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei.