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The Golden Age

A História, já cá se sabia, é a puta mais deslavada e maltratada de que há memória, de quem toda a gente se serve e que ninguém respeita nem paga o devido preço pelo uso e, quantas vezes, abuso. Não sei se por vocação, se por necessidade, se por simples acaso dela mesma. Mas a verdade é essa. Por cá, sempre existiu uma relação muito complicada, complexada e mesquinha entre os portugueses e a dita senhora. Abusada em privado, mas a quem se tecem os maiores elogios em público. Enaltecida exteriormente, mas desprezada no íntimo. Uma das formas de abuso mais comum e mais apreciada é a recorrência ao uso de pequenas historietas para colmatar traumas pessoais, rancores locais, mazelas nacionais. Merecia um estudo psiquiátrico aprofundado, só vos digo. Um dia destes conto a anedota do "orgulho do anão". Ah! Não é preciso, está contada num blog (cuja autoria permanece um mistério) já defunto, aqui.
Hoje assisti ao regresso de mais um episódio na longa tradição da mesquinhez histórica nacional. Que deve ficar para durar durante uns tempos, mais um fogacho a alimentar o luso ego que, temo, irá permitir mais uma discussãozinha idiota, mais uns milhares de exemplares do 24 Horas vendidos e mais uma barrelazinha na ignorância nacional.
Falo do novo filme de Manoel de Oliveira, chamado, delicada e subtilmente, Cristóvão Colombo - O Enigma. Aparentemente, o decano deixou-se inebriar pelos fumos do egocentrismo nacional enxertados em saudade, produzidos por aquele personagem chamado Manuel Luciano da Silva, luso-emigrado nos States, médico de profissão e historiador por vocação e apelo da raça nacional. Em cima podem ver um retrato do cavalheiro, em traje de gala. Há décadas que escreve balelas sobre os Clark Kents que eram os portugueses do século XV, o disparate da Pedra de Dighton e outras quantas maravilhas do imaginário bimbo-marialva nacional. Porém, o alvo preferido deste e de outros personagens histórico-panteístas portugueses sempre foi Cristóvão Colombo, que já deve estar tonto de tanta volta no túmulo à conta das provas incontestáveis de como gostava era de bacalhau e de tinto do Cartaxo e não, nunca, de pizza e de Barolo.
As teses sobre o Colombo Português têm barbas brancas do tamanho do mundo. Há uns 15 anos, o cabalista Mascarenhas Barreto repegou ideias velhas e deu-lhes uma pseudo-leitura cabalística que, embora delirante e pejada de erros, deu brado e correu mundo, em plena época de furor cavaquista e de comemorações dos Descobrimentos. Hoje, no rescaldo do Tratado de Lisboa e sob a égide da desorientação nacional em tempos de globalização, eis que regressam à ribalta, requentadas e pela mão do mais famoso cineasta nacional. Em duas penadas: Colombo era na realidade um tal Salvador Fernandes Zarco, alentejano de gema e de sangue real, que aceitou estoicamente e a bem da Nação a missão de espionagem que lhe destinou D. João II (rei clarividente, visionário genial, um quase Demiurgo na terra dos afonsinhos) que consistia em desviar os malvados espanhóis da Índia que então se buscava, apontando para oeste, onde por cá já se sabia existir um enorme continente desconhecido. Já estou a imaginar as polémicas para fazer vender papel e encher espaços hertzianos.
Hoje ouvi declarações de Manoel de Oliveira, muito intrigado com o maior "mistério", segundo as suas palavras: Cuba. "Não há mais nenhuma Cuba no mundo", a não ser a ilha e a vila alentejana. Conclusão, o português Colombo, num raro momento de fraqueza e de saudade, terá baptizado a ilha com o nome da sua terra natal. Simplesmente genial. Que a ilha tenha sido baptizada, na realidade, com o nome de Juana, em homenagem à filha dos Reis Católicos e que a designação posterior de "Cuba" derive de uma expressão local (sim, porque as criaturas que lá viviam eram humanas e falavam e tudo), são pormenores desprezíveis. O que interessa é o enigma, mesmo que não seja enigma nenhum.
Credo. Já me preparo para ouvir outra vez as trapalhadas cabalísticas sobre a assinatura do gajo e afagamentos ao ego colectivo em como éramos bons nessa altura, os melhores do mundo, pá. E depois virá algum desmancha-prazeres, sei lá, um qualquer Vasco Pulido Valente rezingão falar da decadência que se seguiu, sempre a descer, até chegarmos a isto.
(A quem quiser ler alguma coisa sobre o assunto, recomendo vivamente o comunista, ateu e vendido à Máfia Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Ed. Caminho, 1991, cap. X).
 
(Post escrito há uns tempinhos, noutro blog, e repescado hoje a propósito do mui celebrado centenário do "Carlos" da Canção de Lisboa, cuja invocação resultou da leitura do post do Miguel Vale de Almeida ali em baixo ).

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