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I Got Mail

A palavra heresia, do grego haerĕsis, significa escolha, preferência, gosto particular, escolha filosófica, inclinação ou preferência filosófica ou por uma escola de pensamento. Já a etimologia de outra palavra intimamente ligada, blasfémia - do grego blaptein, injuriar, e pheme, reputação -, indica-nos que na sua génese se referia a irreverência face a uma pessoa ou algo considerado de elevada estima.

 

Com o advento do cristianismo, ambas as palavras evoluíram, assumindo significados exclusivamente dirigidos para a religião cristã, isto é, heresia* passou a ser uma declaração contra a fé cristã como interpretada pela hierarquia da Igreja e blasfémia perdeu a sua dimensão humana. A conjunção de ambas as palavras foi considerada especialmente grave, isto é, uma blasfémia herética, como dizer que Deus é um produto dos homens ou negar a natureza divina do Cristo, era (e aparentemente continua a ser)  um «pecado» mortal dos mais graves (com isto significando durante muito tempo merecedor de morte).

 

Tudo isto a propósito de uma pergunta do Público a que respondi ao mesmo tempo que a Assembleia Geral da ONU votava pelo quarto ano consecutivo uma resolução condenando a «difamação» da religião - a boa notícia nesta história é que o apoio à resolução tem diminuido consideravelmente ao longo dos anos, não obstante este ano a China e a Rússia terem decidido apoiar os estados islâmicos seus proponentes.

 

A minha resposta à singela pergunta do Público (a que o Miguel também respondeu de uma forma que vale a pena ler), que me inquiria sobre o que faria/como seria Jesus se viesse hoje à Terra, foi resumida num pequeno parágrafo, que saiu assim:


Palmira Ferreira da Silva, professora universitária
Se é que existiu alguém chamado Jesus, seria uma pessoa normalíssima. Seria igualzinho a nós, em nada seria diferente. Tenho muita curiosidade sobre o assunto e já li muitos autores que divergem quanto à existência histórica de Jesus. Tenho sérias dúvidas que tivesse existido.

 

Este pequeno parágrafo, publicado na edição de ontem no meio de duas páginas de respostas, teve consequências absolutamente inesperadas, nomeadamente tive um entupimento de mensagens de pessoas que se deram ao trabalho de me procurar no Google para informarem enfaticamente - a maioria no meio de imensas considerações sobre a minha mãe, a minha vida sexual, a minha integridade física e mental  e quejandos -, que eu não tinha o direito  de pensar uma heresia blasfema destas, muito menos tinha direito de a dizer publicamente.

 

Achei especialmente divertido  um mui indignado senhor, em particular face ao artigo de opinião do Desidério na mesmissima edição sobre as reacções às considerações ecológicas de Bento XVI, que, de dedo virtual em riste, me admoestava dizendo, entre outras tolices, que uma professora universitária tinha «responsabilidades» sociais e não podia arrogar-se ao escândalo de se afirmar ateia nem dizer «blasfémias» destas já que poderia influenciar os mais «vulneráveis» intelectualmente.

 

Não me estou nem a vitimizar nem a queixar do teor dos mails, embora discordando de alguns pontos do texto subscrevo o Desidério, não só quando este diz que« as pessoas devem ter direito às suas tolices» mas também quando noutra crónica constatou que muitos pensam que liberdade de expressão significa que «cada qual pode dizer o que quiser, desde que não me insulte nem me ofenda nem ponha em causa as minhas causas mais queridas nem chame nomes feios à minha gata». Apenas acho espantoso que aqueles que exercem tão vigorosamente o seu direito às liberdades de opinião e expressão as neguem a mim apenas porque o que penso e digo é diverso daquilo em que creêm.

 

De acordo com o livro «Política sem Deus. Europa e América, o cubo e a catedral» (Edições Cristandade), do biógrafo de João Paulo II, George Weigel - e as suas 8 fontes de «cristofobia» -, já sabia ser «culpada» de cristianofobia, nomeadamente nas quarta e quinta dimensões. Mas não posso deixar de considerar igualmente espantoso que alguns ululem (também virtualmente) ser «cristianofobia» o facto de pensar como penso. Isto é, não consigo perceber os processos mentais de alguém que acha que sou ateia de propósito para chatear os cristãos e para perseguir a fé. Devem ser mistérios da dita que me ultrapassam ... mas me preocupam exactamente pelas razões que preocupam os que criticaram a resolução da ONU (felizmente não vinculativa), que considera numa das cláusulas que as liberdades de expressão e opinião «carries with it special duties and responsibilities and may therefore be subject to limitations».

 

As liberdades de expressão e de opinião são os valores em que assenta a nossa sociedade democrática e livre. Foram opiniões fora do baralho que sensibilizaram consciências e conduziram à abolição da escravatura, à instituição da democracia, à igualdade de direitos para todos, independentemente de cor da epiderme, credo, sexo ou opção sexual. Pretender que apenas a ortodoxia religiosa de todas as cores tem direito pleno a elas e que todos os outros estão limitados à concordância ou pelo menos abstenção de críticas a essa ortodoxia é o caminho certo para a reversão da sociedade que construímos. Por estas razões,  este hate mail incomodou-me, não pelo conteúdo ou pelos insultos, mas apenas pelo espírito totalitário que lhe está subjacente.


*Logo no concílio de Arles, em 314, foi condenado uma «heresia» desastrosa para a Igreja, a dos Donatistas, que ameaçava alastrar perigosamente e «contaminar» a fé. Os «hereges» Donatos (dois bispos com o mesmo nome: Donato de Casa Nigra, bispo da Numídia; e Donato, o Grande, bispo de Cartago) ensinavam que a Igreja deveria compor-se só de justos, reconhecidos pela sua vida pia e frugal; no momento em que fossem tolerados pecadores no seu seio deixaria de ser a Igreja de Cristo. Esta «heresia», somada à heresia máxima da pregada separação entre Igreja e Estado, era uma ameaça para a ambiciosa, pecadora e faustosa hierarquia cristã de forma que a sua supressão marcou o mote para os restantes concílios, a maioria deles destinados a erradicar pensamentos perigosos para a Igreja, pensamentos identificados como «hereges».


Assim, no concílio seguinte, o concílio de Niceia (hoje Iznik, na Anatólia, Turquia), em 325, foi devidamente condenada outra heresia perigossima, a ariana. Ário defendia que Jesus é apenas uma «criatura do Pai», não sendo, portanto, nem eterno nem divino, insistindo que «houve um tempo em que o Filho não existia». O arianismo, a que aderiram muitos ilustres prelados, entre eles o bispo Eusébio de Cesareia, conhecido escritor da Igreja, ameaçava atingir proporções inadmissíveis, tão mais inadmissíveis porque sem a natureza divina do Cristo o cristianismo não era mais do que uma divisão do judaísmo.

Ou seja, foi necessário inventar palavras anatematizantes para desacreditar e demonizar o «inimigo», simplesmente aquele que não aceitava a autoridade da Igreja. Assim surgiram palavras como epicurista, donatista, maquiavélico, relativista, etc.. que em conjunto identificavam o «herege», aquele que se atrevia a pensar pela sua cabeça, o homem livre, o grande inimigo de qualquer forma de autoritarismo.

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