Transgredir as fronteiras: em direcção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica
«Não há nenhum pensamento importante que a burrice não saiba usar, ela é móvel para todos os lados e pode vestir todos os trajes da verdade. A verdade, porém, tem apenas um vestido de cada vez e só um caminho, e está sempre em desvantagem».
Robert Musil in O Homem sem Qualidades
Nunca pensei ao pôr as minhas leituras em dia dar azo a uma discussão tão iluminante sobre um tema em que estou certa o João (Galamba), a Inês (esta é mesmo provocação) e o Miguel darão contribuições inestimáveis. De facto, os comentários de um certo Mattos, que brande qual arma final de discussão o nome de Félix Guattari, recordaram-me outro obscurantismo que ameaça a modernidade e que tão bem foi dissecado por Alan Sokal e Jean Bricmont no livro «Imposturas Intelectuais».
O livro surgiu na sequência do Sokal Hoax, o artigo de nonsense «patafísico» que dá título ao post, escrito por Sokal e enviado à mui prestigiada revista «Social Text», vade mecum de um certo tipo de «estudos culturais». Os editores gostaram tanto das patetadas inventadas por Sokal sobre as implicações filosóficas e sociais das ciências naturais e da matemática que o publicaram prontamente numa edição especial devotada à filosofia e à sociologia da ciência.
O artigo incluía referências a inacreditáveis absurdos sobre física e matemática provenientes de luminárias pós-modernas como Deleuze, Derrida, Guattari, Lacan, Lyotard, Stanley Aronowitz (membro da direcção da revista, citado nada menos que 13 vezes) e Andrew Ross (responsável pela edição do número em que o artigo apareceu, citado quatro vezes).
Os autores citados primeiro no artigo (vale a pena ler a análise de Paul Boghossian, traduzida pelo Desidério e disponível em formato pdf) e analisados por Sokal e Bricmont no livro que recomendo, caucionam obscurantismos sortidos e toda a espécie de charlatães e vendedores de banhas da cobra com as suas teses contra a ciência ou mais concretamente contra o «dogma imposto pela longa hegemonia pós-iluminista exercida sobre a atitude intelectual ocidental». A linguagem do Mattos que nos calhou nas caixas de comentários, que entrou a matar reprovando a «ciência» (assim mesmo entre aspas) fascista-imperialista europeia, é a mesma dos que elaboram ocas teses filosóficas que apenas demonstram que não fazem pálida ideia dos conceitos científicos em que supostamente as assentam.
Mais concretamente, Sokal e Bricmont pretendem mostrar que esses erros não são involuntários nem acidentais, mas que constituem imposturas deliberadas que pretendem impressionar e intimidar com uma pseudo erudição científica uma audiência ingénua e cientificamente iliterata. Como no título do artigo de Sokal, os autores criticados usam e abusam de termos científicos impenetráveis ao público alvo em contextos completamente non sequitur e recorrem deliberadamente a uma linguagem obscura, difícil ou mesmo impossível de entender, para vender puro lixo pseudo científico como lucubrações profundas. Mais concretamente, parecem estar especialmente fascinados pela mecânica quântica, teoria do caos e teorema de Gödel das quais extrapolam inanidades indescritíveis para concluir que se deve rejeitar «a epistemologia clássica» que consideram «uma forma encoberta de distribuir poder» já que a ciência é um instrumento de opressão.
O livro denuncia assim a influência crescente do relativismo epistémico (e consequentemente cognitivo) em certas áreas das humanidades, afirmando mesmo que há uma crise geral na epistemologia contemporânea - cuja origem pode ser traçada a Popper, Lakatos e ao Círculo de Viena e às reacções de Kuhn e Feyerabend a uma delimitação demasiado restritiva do que é ciência pelos primeiros.
O relativismo pós-moderno, que basicamente assenta na presunção de que a ciência tem tanto valor epistémico quanto os delírios de um qualquer feiticeiro tribal ou vendedor de banha da cobra, como reflecte o filósofo alemão Jürgen Habermas, embora brandido normalmente por gente que se diz de esquerda, esconde tendências políticas e culturais neoconservadoras, determinadas em combater os ideais iluministas.
De facto, graças aos ideais iluministas houve espectaculares avanços civilizacionais e científicos nos últimos 250 anos. Na ética, na política, no direito, no conhecimento e nas metodologias. Estes avanços deveriam impor ao nosso intelecto a disciplina do pensamento crítico e da comprovação prática da validade de uma qualquer afirmação. Foi assim que a ciência e com ela a nossa civilização avançaram. Todavia, os estragos operados pela transposição para as nossas escolas e media da verbosidade mística dos apóstolos do pós-modernismo permitiram que qualquer charlatão possa afirmar o que quer que seja sem recear que lhe peçam qualquer comprovação (especialmente se disfarçar a vacuidade do discurso num palavreado impenetrável, aparentemente muito «intelectual», com muitas mensagens de paz, amor, tranquilidade e preocupação com a natureza e esgrimindo que há formas alternativas de conhecimento se tudo o resto falhar).
No livro «Pós-modernismo, razão e religião», de 1992, Ernest Gellner refere-se ao pós-modernismo da seguinte forma:
«O pós-modernismo é um movimento contemporâneo. É forte e está na moda. E sobretudo, não é completamente claro o que diabo ele é. Na verdade, a claridade não se encontra entre os seus principais atributos. Ele não apenas falha em praticar a claridade mas em ocasiões até a repudia abertamente...».
Gellner rejeita, como qualquer pessoa de bom senso - e mesmo o mais empedernido pós-moderno não usa telepatia em vez de telefone ou tapetes voadores em vez de aviões-, que uma afirmação factual, quer científica quer mitológica ou mágica, tenha o mesmo valor epistémico e só possa ser considerada verdadeira ou falsa em relação a uma determinada cultura. Um portátil funciona da mesma maneira em Ouro Preto e em Osaka; afirmar que o oxigénio, O2, no seu estado fundamental, é uma espécie paramagnética é a constatação de um facto que tem o mesmo valor epistémico aqui, no Afeganistão ou na China. Como continua Gellner:
«O mundo em que vivemos é definido, acima de tudo, pela existência de um sistema de conhecimento único da natureza, instável e poderoso, e pela relação corrosiva e conflituosa que mantém com outros conjuntos de ideias ("culturas") que orientam a vida dos homens.(...)
Existe um conhecimento externo, objectivo e que transcende a cultura: existe, de facto, um "conhecimento para além da cultura." (...) A faculdade, inerente à cognição, que lhe permite ultrapassar as fronteiras de um qualquer casulo cultural e atingir formas de conhecimento válidas para todos - e, consequentemente, um entendimento da natureza que resulta numa tecnologia extraordinariamente poderosa - constitui o facto crucial das nossas condições sociais comuns».
Esta faculdade inerente à cognição que nos permite transcender limites étnico-culturais é estrangulada por estas correntes pós-modernas que, sob a capa do multiculturalismo e respeito pelas diferenças, na prática aprisionam em guetos os membros de uma dada «comunidade cultural» ou social.
Para que não seja mal interpretada, não quero dizer com isto que o conhecimento se reduz às chamadas ciências duras, bem longe disso. Apenas quero dizer que acho um total disparate dizer, como Lacan, que o pénis é equivalente à raiz quadrada de (-1), que E=mc2 é uma equação sexista ou que o Big Bang é sexista. Parafraseando Einstein, «Gravity explains the falling of objects, but gravity cannot explain why people fall in love». Mas também considero que explicar porque alguém se apaixona não nos fornece nenhum conhecimento sobre a queda dos graves. Muito menos considero que o princípio da incerteza de Heisenberg nos explica as causas da decadência do império árabe (ou romano ou otomano) ou que a polarização e repolarização das membranas citoplasmáticas permita dizer que o avanço científico é (escolha a hipótese menos «empobrecedora» ou a mais «elegante») sexista/ eurocêntrico e só beneficia os «patriarcas»/a cultura «ocidental».