Entre a paródia e a denúncia
A caixa de comentários do post «Transgredir as fronteiras» (e mais ainda do «Além de estúpido é um animal») estão tão animadas que resolvi esclarecer alguns pontos. Nomeadamente, realço um dos comentários do Vidal, que me mimoseia com:
«só Palmira Silva e outros completamente ignorantes sobre filosofia, arte e estética contemporâneas para o re-celebrar! Fico a saber que de arte e estética contemporânea nada sabem.»
De facto, confesso-me ignorante sobre arte e estética contemporânea, ressalvando a óptica do «utilizador», tão ignorante que não fazia a mais pálida ideia que o post que etiquetei em ciência de facto era uma abjecta critique de arte/estética.
Quiçá seja essa minha ignorância estética o que impediu escrever um artigo para, sei lá, a Chem Phys Chem, sobre não a fotofísica dos pigmentos utilizados por Melanie Kreuzhof na composição que realizou para a ópera Die tote Stadt que ilustra o post, mas inventando fantásticas efabulações sobre o significado simbólico, sexual ou político do tempo de vida do estado excitado do pigmento vermelho ou como a relaxação do pigmento amarelo nos indica o fim da economia de mercado (bem, isso e o facto de o artigo ser liminarmente rejeitado).
Ou seja, não estou minimamente interessada em dar «usos politico-filosóficos» à química que faço - seria um disparate total usar para congeminações fantásticas non sequitur em áreas em que sou ignorante quer os resultados quer os modelos matemáticos que utilizo.
Mas há luminárias totalmente ignorantes do que seja a ciência ou o método científico que olham a ciência da forma subjectiva com que muitos olham uma pintura surrealista: «rabiscos» que qualquer um pode fazer. Assim, não percebem que a ciência e os factos científicos não são obras de «arte» que cada um interpreta subjectiva e tolamente de acordo com as suas crenças, ideologia política ou sensibilidade estética.
Para os interessados apreciarem em todo o seu esplendor os inacreditáveis absurdos pós-modernos sobre física e matemática de, por exemplo, Virilio, Deleuze, Guattari e Baudrillard, para além do lixo pseudo-científico com que Lacan e Kristeva impressionam hordas de fátuos iliteratos em ciência, algumas destas tolices científicas estão disponíveis online.
Também está disponível o artigo de Richard Dawkins, «Postmodernism disrobed» publicado na Nature em 1998, de que recomendo particularmente a análise dos dislates pseudo-feministas de Luce Irigaray, a tal que acha que E=mc2 é uma equação sexista porque ... «privilegia a velocidade da luz em relação a outras velocidades que nos são vitalmente necessárias», aliás, toda a física é sexista por que «privilegia coisas sólidas e rígidas». Uma das suas discípulas explica o que isto quer dizer
«The privileging of solid over fluid mechanics, and indeed the inability of science to deal with turbulent flow at all, she attributes to the association of fluidity with femininity. Whereas men have sex organs that protrude and become rigid, women have openings that leak menstrual blood and vaginal fluids... ».
Felizmente que o meu professor de Fenómenos de Transferência não sabia que mecânica dos fluidos e em particular o fluxo turbulento era algo que a ciência era incapaz de tratar e assim passei dois semestres fascinantes durante o curso a fazer cálculos que descobri a posteriori não existirem...
O problema é que há quem dê ouvidos a estes artsy fartsy (pseudo)científicos que acham que a ciência é um «mito», uma «narrativa» como a de qualquer feiticeiro tribal,e se insurgem contra o «poder social» desta «construção» - a que chamam uma arma de opressão que cumpre «uma função social de diferenciação e de exclusão». E se o relativismo pós-moderno que cauciona obscurantismos sortidos tem consequências desastrosas, pior ainda é o que resulta do horror concomitante ao ensino de ciência - que consideram «um campo de conflito e de luta claramente marcada pelas relações de poder», um «instrumento de opressão e de discriminação, na medida em que contribui para punir os alunos que, sem compreensão de seus fundamentos, são mal sucedidos».
Steve Fuller, grande apóstolo da epistemologia social que tenta elevar ao estatuto de única fonte de conhecimento, é um dos que dá especial atenção às relações de poder na ciência por outras palavras, se devota a denegrir a ciência. Em 1988, Fuller escrevia no livro «Social Epistemology» que «a epistemologia clássica parecia viável exactamente porque se pensava existirem 'verdades' cuja aceitação beneficiaria a todos — ou, pelo menos, a todos os seres racionais — e consequentemente não tinham efeitos globais na distribuição do poder. Mas Fuller conclui que a ciência não é neutra, é um instrumento de opressão. Como acusa no referido livro «se a concessão de garantia epistemológica envolve, entre outras coisas, a aceitação social, e um dos benefícios chave dessa concessão é o poder de fazer pronunciamentos autoritativos, então, conceder o selo de garantia epistemológica é uma forma encoberta de distribuir poder». Assim, Fuller considera que quem deve ter poder «epistemológico» é o próprio Fuller e demais pós-modernistas... que curiosamente devotam as suas lucubrações às ciências duras e empíricas que tanto desprezam!
Na sua cruzada contra a ciência, nos últimos tempos Fuller tem-se dedicado à defesa do ensino do criacionismo em roupagem de desenho inteligente, tal como já fez no julgamento de Dover. A posição cretina pós-moderna de Fuller sobre DI e evolução foi passada a livro, «Science Vs Religion?: Intelligent Design and the Problem of Evolution», um monte de dislates fátuos, ou antes «um pedaço de trabalho verdadeiramente miserável, cheio de erros científicos, históricos e mesmo teológicos», fabulosamente dissecado no artigo da Skeptic «The Painful Elaboration of the Fatuous, Norman Levitt Deconstructs Steve Fuller’s Postmodernist Critique of Evolution» de Norman Levitt, um matemático de Rutgers. A recensão de Sahotra Sarkar foi bastante mais simpática. Sarkar leu o livro como uma anedota que muito o divertiu já que «No one should begrudge us our simple pleasures. I'm happy to have read this book, and even more so not to have paid for it».
Felizmente alguns dos mais ferozes defensores da «crítica da ciência» começaram recentemente a perceber os efeitos das suas patetadas. Nomeadamente Bruno Latour escreveu em 2004 um artigo muito interessante, curiosamente no mesmo número da «Critical Inquiry» em que Žižek elabora em linhas paralelas de pensamento,
«Should we apologize for having been wrong all along? Should we rather bring the sword of criticism to criticism itself and do a bit of soul-searching here: What were we really after when we were so intent on showing the social construction of scientific facts? Nothing guarantees, after all, that we should be right all the time.
(...) What has critique become when a French general, no, a marshal of critique, namely, Jean Baudrillard, claims in a published book that the World Trade Towers destroyed themselves under their own weight, so to speak, undermined by the utter nihilism inherent in capitalism itself–as if the terrorist planes were pulled to suicide by the powerful attraction of this black hole of nothingness? What has become of critique when a book can be a best-seller that claims that no plane ever crashed into the Pentagon?
I am ashamed to say that the author was French too. Remember the good old days when revisionism arrived very late, after the facts had been thoroughly established, decades after bodies of evidence had accumulated? Now we have the benefit of what can be called instant revisionism?»
Posso apenas ser optimista e esperar que este mea culpa seja consequente e seguido por mais «críticos» ... e que não seja tarde de mais para reverter o mal que entretanto fizeram!
Adenda: Já depois de ter escrito o post descobri que este espírito pós-crítico está longe de ter chegado a Portugal, pelo menos é o que transparece de uma das muitas pérolas da caixa de comentários:
Talvez seja porque a obra de Caravaggio, Rembrandt ou Velázquez são realidades mais importantes do que toda a história da ciência junta.