tristes costumes
Domingo à noite, na Quinta da Lage, um dos últimos grandes bairros de lata da área metropolitana de Lisboa, um jovem de 14 anos foi atingido na cabeça por uma bala de um agente da PSP. Outro jovem, de 17 anos, foi baleado numa perna. Os dois fariam, segundo a PSP esclareceu, parte de um grupo de quatro que se deslocaria num veículo furtado e que uma patrulha descaracterizada (ou seja, à paisana) daquela força policial surpreendeu e perseguiu. O rapaz de 14 anos, Elson Pina Sanches, teria, ainda de acordo com a versão veiculada pela PSP, brandido/apontado uma arma ao agente que disparou. Teria sido esse facto a determinar o disparo deste, qualificado em comunicado da PSP, na segunda-feira, como "necessário" e efectuado "após esgotadas as advertências e avisos necessários à extinção do perigo iminente".
Elson morreu nessa madrugada, o amigo Bruno sobreviveu. O polícia em causa foi constituído arguido e a sua arma confiscada. A Polícia Judiciária está a investigar, tendo em seu poder a arma alegadamente retirada a Elson. A família de Elson, o amigo Bruno e, alegadamente, algumas testemunhas afiançam que os jovens não tinham consigo armas, que a arma em causa foi "plantada" pela PSP e que Elson foi agredido após ser baleado. A mãe de Elson afirma que quando viu o filho por terra tentou acercar-se dele mas não a deixaram. E a irmã de Bruno pergunta: "E o meu irmão, também tinha uma arma para justificar o tiro que levou?"
Desejavelmente, os cidadãos de um Estado de Direito deveriam ter todos os motivos para não duvidar de que as suas forças policiais tendem a agir nos limites da lei e da proporcionalidade. Ou seja, deveriam crer, por princípio, na versão do polícia. Sucede que a versão DO polícia se transformou, em horas (minutos?), na versão DA polícia. E isso faz toda a diferença. Que tempo teve a PSP para averiguar se de facto o ocorrido se enquadra numa situação de legítima defesa? Inquiriu testemunhas? Fez perícias? Reconstituições? Ou ter-se-á limitado, como parece ser óbvio e é aliás triste costume, a produzir uma versão o mais benigna possível dos factos? Mais: a PJ foi logo chamada ou foi a PSP que tomou conta da ocorrência?
A ideia de que a hipótese de uma actuação menos própria de um ou vários dos seus membros conspurca uma instituição policial e é portanto preferível "cozinhar" logo versões favoráveis tem sido uma constante na atitude da PSP e da GNR. É uma cultura de cerrar de fileiras e de mentira (não faltam exemplos) que promove a impunidade e a irresponsabilidade e faz tristemente normal duvidar do que estas instituições digam a propósito de um episódio como o descrito. Uma cultura que leva os cidadãos a temer a polícia pelos motivos errados e que envergonha a democracia. É mais do que altura de acabar com ela. Quem chefia e tutela deve fazer perceber - e de modo claro - que são as mentiras corporativas, as versões apressadas e os crimes impunes que conspurcam a polícia. E quem manda nela.
(publicado hoje no dn)