diálogos com lobos
O cardeal patriarca de Lisboa foi ao Casino da Figueira da Foz dialogar com uma jornalista, parece que a propósito dos 125 anos do estabelecimento. E fez uma série de considerações sobre os muçulmanos – desde a necessidade de ler o Corão para "os entender" até recomendar às jovens portuguesas que não casem com um, por causa dos sarilhos que daí poderiam advir – tantos "que nem Alá sabe onde é que acabam" –, concluindo na dificuldade de dialogar com eles. Porque, afirma, "só é possível dialogar com quem quer dialogar", "eles acham que têm a verdade toda" e "dialogam como os lobos marcam o seu caminho na floresta".
Se as reacções dos representantes da Comunidade Islâmica se pautaram por uma diplomacia de encriptada frieza, não foi difícil aos jornalistas encontrar membros da comunidade islâmica ou não islâmicos casados com islâmicos que reagiram com estupefacção e indignação às palavras de José Policarpo. Ao DN, um muçulmano de 70 anos casado há 41 com uma católica praticante declarou-se "assarapantado" e falou num "rastilho". Ao Público, uma não muçulmana que vive com um muçulmano há 14 anos disse "ponderar uma queixa-crime". Entre os comentadores em media e blogues, porém, não faltou quem defendesse Policarpo e falasse "num vendaval de politicamente correcto" e numa alegada impossibilidade de se "dizer mal" do Islão que um editorial do Público qualificava de "mordaça da auto-censura".
Curiosamente, esta polémica, que teve até direito a menção em vários media internacionais, surge no momento em que a do autocarro ateu – como ficou conhecido o anúncio, promovido por uma associação ateísta, que surgiu em alguns autocarros londrinos alertando para a probabilidade da inexistência de deus – se inflama em Espanha e Itália, com a chegada do anúncio àquelas paragens e a reacção irritada das respectivas hierarquias católicas, que qualificaram a iniciativa de "intolerante".
Vejamos: se um clérigo católico diz que os muçulmanos são "como lobos" (suspeita-se da bondade da comparação, embora a espécie, em vias de extinção, desperte cada vez mais simpatia), há logo quem defenda o seu direito a dizer "o que pensa", vilipendiando os seus críticos por dizerem o que pensam; se uma associação ateia diz que não há deuses – "A má notícia é que deus não existe; a boa é que não faz falta", lê-se no anúncio italiano –, fala-se em intolerância. Não vale a pena perguntar que diria a hierarquia católica portuguesa se amanhã aparecesse um autocarro com os escritos "os católicos são como os lobos, não se pode falar com eles". Basta lembrar a fúria com que reage de cada vez que se aventa a retirada dos artefactos publicitários do catolicismo espalhados por escolas e hospitais públicos. Quanto à ideia de que quem censura as palavras do cardeal o faz por defesa do islamismo, padece de um problema simples: o de tratar a questão como se não houvesse exterior à lógica religiosa. E ainda há quem diga que o autocarro ateu não faz sentido.