Os alquimistas das estrelas
João, não percebo muito bem o que entendes por ciência para afirmares peremptoriamente que ciência «é ou devia ser uma actividade puramente pragmática: é um instrumento para fins humanos, mas nunca pode ter qualquer pretensão existencial». Todas as actividades humanas têm fins humanos, a ciência tem como fim explicar aos humanos os fenómenos naturais e fornecer modelos que nos permitam prever esses mesmos fenómenos. A grande diferença em relação a outras actividades humanas é exactamente esta capacidade de previsão (não sei se é a isto que chamas «pragmatismo»), que nos permite saber com certeza que as maçãs continuarão a cair de acordo com leis bem estabelecidas ou a que horas o Sol se porá hoje. Claro que há imensos fenómenos de que estamos ainda a «arranhar» a superfície, outros para os quais os nossos modelos são ainda muito grosseiros e portanto as previsões falham.
Assim, a ciência pretende mesmo dizer-nos como o mundo é mas não percebo porque razão afirmas que o facto de o sabermos nos «alivia da responsabilidade de existir». Aliás, discordo em absoluto de que a «objectividade» seja uma «grande desresponsabilizadora». Bem pelo contrário, acho que a subjectividade é o refúgio dos que não têm como justificar comportamentos que, por exemplo, a maioria de nós repudia, como sejam o racismo ou o sexismo.
Aurora Australis ou «southern lights», fotografada do vaivém espacial Discovery durante a missão STS-114 à Estação Espacial Internacional.
Por exemplo, as auroras, quer as boreais quer as austrais, devem-se a partículas carregadas com origem no Sol, o plasma que conhecemos como vento solar. O escudo magnético da Terra deflecte a maior parte dessas partículas. As que são aprisionadas na magnetosfera aceleram ao longo das linhas de campo da Terra até atingirem uma região circular, na parte superior da atmosfera, denominada oval das auroras, ou annulus. Na oval das auroras, as partículas colidem com os gases presentes, transferindo-lhes energia. Os gases excitados libertam este excesso de energia sob a forma de fotões, ou seja, emitem luz.
No passado, as auroras preencheram o léxico do imaginário mitológico dos que as observavam fascinados. O fascínio permanece inalterado embora hoje consigamos explicar objectivamente este fenómeno, sem recurso a qualquer mitologia. Mas não estou a ver algo de que nos desresponsabilizemos ao desvendar os mistérios das auroras (ou do arco íris ou da origem das espécies...)
Assim como não percebo o que cargas de águas seja a tal «demanda 'existencial'» de que te queixas em relação a Darwin, que me parece um lamento à la John Keats e horroriza-me especialmente a postura que demonstras nos comentários em relação ao criacionismo, quiçá motivada pela ignorância do que está subjacente, nomeadamente a pretensão pelos criacionistas de equiparar mitologia religiosa a ciência nas aulas de biologia. Muito menos percebo o que queres dizer com «então a demanda 'existencial' da ciência não passa de religião recauchutada e uma versão moderna e simplificada (e amputada) do ideal Platónico de contemplação».
Aliás, em relação a este tema não percebo porque razão não falas em Galileu para «rejeitar a utilidade de um entendimento naturalistico» do Universo e te quedas (passe o trocadilho) em Darwin e no Homem. De facto, Galileu e Darwin tiraram a Terra e o Homem do centro do Universo. Deveria ser para ti mais grave em matéria de «desresponsabilização» saber que todos nós não passamos de meros produtos das estrelas do que saber que somos um produto casuístico da evolução.
Mas é curioso que menciones Platão no mesmo parágrafo em que sugeres que a ciência não passa de religião recauchutada e ainda por cima «desresponsabilizadora». Recordei o diálogo Êutífron onde Sócrates pergunta ao defensor da teoria religiosa da fundamentação da ética, a teoria dos mandamentos divinos, se o bem moral é o que é porque os deuses o querem ou amam, ou se eles o querem ou amam porque é um bem.
Se aceitarmos a primeira alternativa então o bem moral é arbitrário, isto é, por exemplo a tortura e assassínio são um mal unicamente porque os deuses não gostam de tais atrocidades, algo que até os filósofos religiosos, incluindo alguns filósofos cristãos da religião, como Swinburne, consideram insustentável. Assim, a única hipótese aceitável é a segunda, ou seja, a fundamentação da ética não depende dos deuses. Aceitamos que a tortura ou o assassínio são errados por razões intrínsecas e não porque um qualquer deus as declarou anátema.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado à «responsabilidade de existir», ou seja, ao sentido da vida. Defender que a vida tem sentido porque são os deuses que o determinam torna esse sentido arbitrário e isso sim desresponsabiliza-nos de lhe dar sentido. Isto é, uma vida tem ou não sentido por si não porque algum deus assim o decidiu.
Em conclusão, se a vida tem sentido não há deuses que lho possam retirar. E se não o tem, não há deuses que lho possam dar. Tal como se uma acção for virtuosa, nenhum deus a pode tornar vil. O problema é que para alguns há deuses que tornam virtuosas, subjectivamente, claro, acções absolutamente vis. Parafraseando-te, é o eterno consolo da subjectividade, essa grande desresponsabilizadora.