Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

jugular

Contrastando o cristianismo de Obama com o de Bush

Ao contrário de Bush, cuja fé surge como algo associado a uma certeza moral, que eleva o instinto a uma virtude absoluta e que, por isso, cai num certo maniqueismo heroico, com os resultados que todos conhecem, a religiosidade de Obama é de uma natureza inteiramente distinta. O seu cristianismo é profundamente céptico, aberto e tolerante a outros pontos de vista, e rejeita a necessidade de uma lógica do confronto e oposição, tão de agrado de Bush e da direita religiosa americana:

 

"I believe that there are many paths to the same place, and that is a belief that there is a higher power, a belief that we are connected as a people. That there are values that transcend race or culture, that move us forward, and there's an obligation for all of us individually as well as collectively to take responsibility to make those values lived."

 

Estou-me nas tintas para o facto de Obama recorrer ao cristianismo para articular a sua visão política. Podemos não gostar e que alguém fale em 'higher power' inspiradores e coisas do género, mas o que mais me interessa não é a fonte da sua inspiração e sim o conteúdo substantivo da sua mensagem: 'we are connected as a people'. Parece um lapalissada, mas o mundo precisa de líderes políticos que acreditem nisto; e era o que mais faltava se, em nome de uma qualquer ideia abstracta de secularismo ou separação entre religião privada e política, se desperdissasse recurso tão valioso.

 

A ênfase de Obama na importância de uma responsabilidade colectiva por um destino partilhado está associada à ideia de reconciliação, que é um conceito que deve muito à tradição cristã mas que me parece ser de enorme relevância e utilidade política, sobretudo tendo em conta a lógica maniqueísta tão em voga nos últimos tempos. A ideia de reconciliação é um conceito central no pensamento de Hegel e de cristãos de esquerda como Paul Ricoeur e Charles Taylor, que rejeitam a ideia, supostamente realista, de que a lógica da violência, do conflito e da oposição seja uma necessidade intemporal da nossa existência colectiva (bem Hegel não é bem assim, mas....). Obama segue numa linha semelhante de pensamento, e o seu comunitarismo político, centrado na absoluta responsabilidade pelo Outro, pode contribuir para transformar a política dos EUA de forma muito positiva. Para bem dos americanos, envoltos numa guerra cultural que Obama pode suavizar; e para bem de todos nós, que bem precisamos de um líder sensível à complexidade e exigências do mundo em que vivemos.

 

A esperança de Obama também tem contornos religiosos evidentes. Mas não é uma esperança passiva ou quietista, onde a religião serve de consolo perante a realidade da vida. Por isso a sua fé não poderia nunca ser privada. A alienação associada a uma resignação apolítica, tradicionalmente atribuida ao cristianismo (Marx), é rejeitada por Obama, pois a reconciliação não é diferida para um além inatingível e independente da vontade humana. Por isso, a esperança de Obama não é contemplativa, nem é um adorno retórico de gosto duvidoso; ela é prática, pois reconhece e valoriza a capacidade transformadora da acção política. Mas Obama não é um sonhador utópico e sentimentalista. O que ele não aceita — e ainda bem — é a posição pseudo-realista dos cínicos que olham para o mundo e só vêem necessidade.

 

O mundo não é apenas a totalidade dos factos, como pretendem os realistas. A realidade transcende sempre o existente, pois ela também aponta para o possível. Esperança é isto: é agir acreditando que não estamos condenados a um etrono retorno do mesmo, a uma história que alguém já escreveu por nós e pela qual nós não somos responsáveis. Ao contrário do que diz o João Pereira Coutinho, tal não significa necessariamente megalomania ou narcisismo; é apenas o reconhecimento de que a realidade e a história não são um dado mas sim algo em aberto e por escrever, o que exige uma responsabilidade infinita. Se calhar — e isto é uma provocação para a Fernanda e a Palmira — só a ilusão religiosa está à altura deste desafio: só uma posição religiosa pode transcender o cinismo que olha para todo o lado e só vê realidade.

 

(Para quem estiver interessado em perceber um pouco mais sobre a fé de Obama, sugiro esta entrevista)
 

16 comentários

Comentar post

Pág. 1/2

Arquivo

Isabel Moreira

Ana Vidigal
Irene Pimentel
Miguel Vale de Almeida

Rogério da Costa Pereira

Rui Herbon


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes

  • f.

    olá. pode usar o endereço fernandacanciodn@gmail.c...

  • Anónimo

    Cara Fernanda Câncio, boa tarde.Poderia ter a gent...

  • Fazem me rir

    So em Portugal para condenarem um artista por uma ...

  • Anónimo

    Gostava que parasses de ter opinião pública porque...

  • Anónimo

    Inadmissível a mensagem do vídeo. Retrocedeu na hi...

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2008
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2007
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D

Links

blogs

media