Contrastando o cristianismo de Obama com o de Bush
Ao contrário de Bush, cuja fé surge como algo associado a uma certeza moral, que eleva o instinto a uma virtude absoluta e que, por isso, cai num certo maniqueismo heroico, com os resultados que todos conhecem, a religiosidade de Obama é de uma natureza inteiramente distinta. O seu cristianismo é profundamente céptico, aberto e tolerante a outros pontos de vista, e rejeita a necessidade de uma lógica do confronto e oposição, tão de agrado de Bush e da direita religiosa americana:
Estou-me nas tintas para o facto de Obama recorrer ao cristianismo para articular a sua visão política. Podemos não gostar e que alguém fale em 'higher power' inspiradores e coisas do género, mas o que mais me interessa não é a fonte da sua inspiração e sim o conteúdo substantivo da sua mensagem: 'we are connected as a people'. Parece um lapalissada, mas o mundo precisa de líderes políticos que acreditem nisto; e era o que mais faltava se, em nome de uma qualquer ideia abstracta de secularismo ou separação entre religião privada e política, se desperdissasse recurso tão valioso.
A ênfase de Obama na importância de uma responsabilidade colectiva por um destino partilhado está associada à ideia de reconciliação, que é um conceito que deve muito à tradição cristã mas que me parece ser de enorme relevância e utilidade política, sobretudo tendo em conta a lógica maniqueísta tão em voga nos últimos tempos. A ideia de reconciliação é um conceito central no pensamento de Hegel e de cristãos de esquerda como Paul Ricoeur e Charles Taylor, que rejeitam a ideia, supostamente realista, de que a lógica da violência, do conflito e da oposição seja uma necessidade intemporal da nossa existência colectiva (bem Hegel não é bem assim, mas....). Obama segue numa linha semelhante de pensamento, e o seu comunitarismo político, centrado na absoluta responsabilidade pelo Outro, pode contribuir para transformar a política dos EUA de forma muito positiva. Para bem dos americanos, envoltos numa guerra cultural que Obama pode suavizar; e para bem de todos nós, que bem precisamos de um líder sensível à complexidade e exigências do mundo em que vivemos.
A esperança de Obama também tem contornos religiosos evidentes. Mas não é uma esperança passiva ou quietista, onde a religião serve de consolo perante a realidade da vida. Por isso a sua fé não poderia nunca ser privada. A alienação associada a uma resignação apolítica, tradicionalmente atribuida ao cristianismo (Marx), é rejeitada por Obama, pois a reconciliação não é diferida para um além inatingível e independente da vontade humana. Por isso, a esperança de Obama não é contemplativa, nem é um adorno retórico de gosto duvidoso; ela é prática, pois reconhece e valoriza a capacidade transformadora da acção política. Mas Obama não é um sonhador utópico e sentimentalista. O que ele não aceita — e ainda bem — é a posição pseudo-realista dos cínicos que olham para o mundo e só vêem necessidade.
O mundo não é apenas a totalidade dos factos, como pretendem os realistas. A realidade transcende sempre o existente, pois ela também aponta para o possível. Esperança é isto: é agir acreditando que não estamos condenados a um etrono retorno do mesmo, a uma história que alguém já escreveu por nós e pela qual nós não somos responsáveis. Ao contrário do que diz o João Pereira Coutinho, tal não significa necessariamente megalomania ou narcisismo; é apenas o reconhecimento de que a realidade e a história não são um dado mas sim algo em aberto e por escrever, o que exige uma responsabilidade infinita. Se calhar — e isto é uma provocação para a Fernanda e a Palmira — só a ilusão religiosa está à altura deste desafio: só uma posição religiosa pode transcender o cinismo que olha para todo o lado e só vê realidade.
(Para quem estiver interessado em perceber um pouco mais sobre a fé de Obama, sugiro esta entrevista)