Viver com um comprimido é viver sozinho
O artigo do Público do público sobre o Viagra coloca uma pergunta que parece ser uma consequência lógica da medicalização do desejo: o desejo feminino cabe num comprimido? Pergunta legítima, mas que ignora algo fundamental, pois esquece-se de perguntar pela própria natureza do desejo, sua relação com o corpo e com a própria identidade do ser humano. A terapeutização da vida emocional pressupõe um certo entendimento daquilo que uma pessoa é, da sua identidade.
E esse entendimento, tido como auto-evidente, diz que uma pessoa é essencialmente um corpo, algo imediato e totalmente individualizado; um corpo é um organismo fechado sobre si mesmo. Ele é uma realidade autónoma, que pode eventualmente relacionar-se com algo exterior, mas onde essas relações são vistas como contingentes, não afectando a identidade, a essência, do próprio corpo. Assistimos aqui a um dualismo essência/contingência, interior/exterior —que é herdeira do dualismo mente/corpo de Descartes— que orienta toda a nossa análise e que importa contestar, sob pena de reduzirmos o ser humano a uma espécie de organismo manipulável, passível de optimização técnica. Atenção: eu não digo que o ser humano não seja também um organismo; digo apenas que ele não pode ser reduzido a esse tipo de realidade. O dia que 'querida estás chateada comigo por isso vai lá tomar a tua dose' seja a única resposta inteligível para lidar com problemas emocionais, é o dia em que perderemos de vez a nossa humanidade. A tristeza, a melancolia e a falta de desejo não são apenas estados negativos da nossa vida emocional que importa eliminar ou curar. Eles dizem-nos algo de positivo (sim, de positivo) sobre nós próprios, pois nós não somos essencialmente uma máquina eficiente com os seus problemas técnicos ocasionais. A ideia de que poderá existir no futuro uma solução médica para todos os nossos problemas é aterrador.
O que é então o desejo? De um certo ponto de vista, o desejo não é mais do que uma modificação biológica, natural, do nosso organismo. Há desejos positivos, que favorecem a vida biológica, e outros negativos, que a negam. Mais: o desejo é essencialmente algo que pode ser analisado independentemente da sua relação com aquilo a que o desejo se refere. É este elemento de referência (também conhecida como intencionalidade do desejo) que a naturalização do desejo ignora, e ao fazê-lo transforma o ser humano num identidade autónoma e auto-referencial. Há um ponto de vista alternativo, que rejeita este reducionismo, e que tem origem na noção platónica de desejo. Para Platão, o desejo não pode ser entendido independentemente da relação interna com aquilo que é desejado. Se quisermos, o desejo compreende a relação entre duas realidades e não existe independentemente dessa relação. É esta ideia que preside a toda a filosofia pré-Cartesiana e que o filósofo francês, influenciado pela revoolução científica do sec xvii, tentou destruir. Na era moderna, e contra a tradição de inspiração cartesiana, a tradição platónica foi reinterpretada e recuperada por Hegel (com um 'ajudinha' de Kant), tornando possível disciplinas como a psicanálise (em Freud mas sobretudo em Lacan) e outras áreas como a fenomenologia e a hermenêutica. Os autores que incorporaram elementos da filosofia de Hegel e a sua crítica ao cartesianismo são obviamente muito diferentes, mas todos eles rejeitam que se possa entender a identidade do ser humano a partir de uma essência autónoma, independente e pré-individualizada.
Qual a importância desta perspectiva alternativa sobre o desejo de inspiração platónica? Ela é enorme, pois é a única que nos permite pensar e lidar com o humano de uma forma que não se esgote em considerações orgânicas ou químicas. Mais: ela é a única que permite pensar a liberdade do sujeito. Sobre estes temas sugiro este texto. Voltarei brevemente a estes tema.

