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jugular

visto do deuteronómio

Aconteceu um destes dias. "Os extremistas islâmicos da Somália executaram uma jovem de 23 anos, por lapidação. A mulher foi acusada por adultério na localidade Kismayu, no Sul do país." A mulher não tem nome, quem a matou também não, a história tem dez linhas. Não há imagens nem entrevistas, nada daquilo que faz "o interesse humano". Não é pois uma grande notícia, morrer à pedrada. Pedra após pedra da mão de gente que ainda ontem talvez nos dissesse olá, que ainda ontem era um vizinho ou um primo ou um irmão, que ainda ontem julgávamos amigo. Mas morremos ali, cercados como por lobos, golpe após golpe. Nenhum profeta para entrar no círculo e suster o massacre com uma parábola, nenhum sinal divino, nenhum raio a fulminar os monstros. E depois nenhum julgamento, nenhum castigo.


É como se estas mulheres nunca tivessem existido. É como se nunca tivessem sido exactamente como nós, a pensar no que vão fazer no dia seguinte, que vai haver um dia seguinte, que não é possível morrer assim, tão injusta e brutalmente, que o destino não pode ser aquele, que algo virá para mudar a sorte, que quem golpeia perceberá que não pode ser, que é demasiada dor, demasiado sangue, demasiado pavor, que não se imaginará a viver com a culpa, que nenhum deus poderá querer aquilo, em nome de quê uma morte assim. Mas a mulher de Kismayu está morta. Ainda hão-de ter-lhe cuspido o cadáver, arrastado os restos para um buraco onde a comerão os bichos. A mulher de Kismayu não existia para quem a matou senão como abominação e exemplo. A mulher de Kismayu é todas as mulheres, homens e crianças que um versículo satânico condenou à fogueira, à lapidação, à tortura mais atroz para glória de uma ideia de universo, de uma ideia de bem.

Uma ideia de bem, sim, Bem com capitular, letra grande, reverência e vénia. Bem, isto. Palavra de um deus qualquer traduzida por um tipo qualquer num pergaminho qualquer. Não, não digam que o Alcorão não diz que se devem matar os infiéis. Não digam que a Bíblia não diz que se devem matar os infiéis. Não digam que é má interpretação. Não digam que as religiões são amor e quem as estraga são os homens: as religiões são feitas, construídas, sonhadas, e ditadas por quem as pratica, por quem diz e crê que nos livros que mandam matar está a palavra de deus, a palavra que não pode ser contrariada, discutida, reflectida, abjurada. Não é decerto por acaso que nunca se ouviu um mullah lançar uma fatwa contra quem lapida mulheres. Não é por acaso que nunca se ouviu o papa pedir desculpa às mulheres, em nome da instituição que representa, pela perseguição, tortura e morte de "bruxas", adúlteras, mães solteiras, todas as que tiveram o azar de irritar os santos homens e a sua ideia de santa mulher. Há muçulmanos boas pessoas, em horror ante Kismayu? Claro. Há católicos que não se reconhecem no Deuteronómio. Mas, vistos do Deuteronómio e da sua infinita crueldade, são infiéis como os outros. (publicado hoje no dn)


 

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