O Estado dentro de um Estado
O caso Eluana Englaro, a italiana há 17 anos num estado vegetativo permanente e irreversível, preenche o debate político e mediático italiano, em particular desde que o governo de Silvio Berlusconi decidiu produzir uma lei que se sobrepõe à ordem do tribunal que permite que seja retirado o tubo que a alimenta artificialmente há quase duas décadas.
Este caso recorda o de Terry Schiavo, que há exactamente 4 anos provocava os mesmos tumultos nos Estados Unidos, mesmo a nível de frenesim legislativo. De facto, depois de uma tentativa ridícula de arrolar Schiavo como testemunha num suposto inquérito no Congresso - façanha complicada para alguém em estado vegetativo há 15 anos -, os fazedores de leis republicanos tentaram impedir a remoção da sonda trabalhando arduamente num fim de semana para produzir uma lei federal que obrigasse os médicos a prolongar artificialmente a vida de Terry Shiavo, que 15 anos antes sofrera um acidente cerebral muito grave e irreversível.
O presidente Bush, o grande defensor da vida que todos conhecemos, interrompeu as suas férias no Texas para assinar a dita lei, que foi discutida e aprovada numa sessão especial do Congresso americano, convocada especialmente para o efeito. Lembro-me em particular das declarações do senador Bill Frist, líder da bancada republicana e representante do Tennessee, que afirmou que «O congresso dos Estados Unidos tem trabalhado ininterruptamente nos últimos três dias para manter a dignidade humana e afirmar a cultura da vida».
O Supremo tribunal norte-americano invalidou as tentativas legislativas de tão ardorosos defensores da vida e dignidade humanas; em Itália, é o presidente Giorgio Napolitano que tenta manter a aparência de um estado de direito. Em ambos os casos, os mais estridentes defensores da não-existência de um invólucro que, como pessoa, morreu há muito, são devotos cristãos, em particular o Vaticano.
Devo confessar que nunca percebi porque razão ambos os casos merecem tanto repúdio religioso quando ninguém sequer se pronuncia sobre os filhos dos crentes das muitas Igrejas cristãs que consideram blasfemos os hospitais e tratamentos médicos, considerando que o único tratamento possível é a oração. Estas crianças continuam a morrer de doenças facilmente curáveis ou para as quais existem vacinas há décadas. Mas, claro, obrigar alguém a tratamento médico que rejeita por questões de fé é completamente diferente de retirar esse tratamento por razões «ateístas», como respeitar o direito a morrer em dignidade!
No caso Schiavo, achei pena que o tempo dos congressistas na defesa de alguém em estado vegetativo não tivesse sido dispendido proteger as crianças do Ohio, estado cuja lei reza na secção 2151.03(e):
«Uma criança que, em vez de tratamento médico ou cirúrgico para uma ferida, doença, incapacidade, ou doença física ou mental, está sujeita a tratamento espiritual através de oração, de acordo com os preceitos de uma religião bem reconhecida, não é uma criança negligenciada», acrescentando na secção 2151.421, que «nenhum relatório é necessário no que concerne a uma criança nessa situação.»
Em Itália, em particular com um governo Berlusconi, não tenho muitas dúvidas que o Vaticano, mais uma vez, consiga impor as suas tolices a todo um país. De facto, a crise que levou à queda do governo anterior deve a sua origem à oposição do Vaticano às «reformas liberais» da coligação de centro-esquerda de Romano Prodi. E é particularmente instrutivo analisar o prenúncio da crise,em 21 de Fevereiro de 2007, com o anúncio da demissão inesperada de Prodi. Pouco antes, a 19 de Fevereiro, o então primeiro-ministro italiano teve uma reunião no Vaticano com o secretário de estado, Tarcisio Bertone, em que discutiu o execrado (pelo Vaticano) projecto de lei, já aprovado na câmara dos deputados do parlamento italiano, que reconheceria alguns direitos civis às uniões de facto, incluindo àquelas entre pessoas do mesmo sexo.
O encontro decorreu no âmbito do aniversário do tratado de Latrão, celebrado entre Pio XI e Benito Mussolini em 11 de Fevereiro de 1929, que reconheceu o Vaticano como um Estado dentro de um Estado. À saída do encontro, que contou mais tarde com a presença de outros membros do governo italiano e dignitários católicos, incluindo o presidente da Conferência Episcopal Italiana (CEI), Camillo Ruini, o gabinete de Prodi declarou que as conversações «cordiais e serenas» ajudaram a «fortalecer» as relações Itália-Vaticano.
Dois dias depois, horas antes de ser apresentado no Senado o projecto de lei que regulamentaria as uniões de facto, Prodi demitiu-se por razões completamente espúrias. O presidente Giorgio Napolitano convidou Romano Prodi a permanecer como primeiro-ministro e Prodi recebeu um voto de confiança por parte do Senado que garantiu a continuidade de seu governo de centro-esquerda. Isto é, tudo ficou na mesma excepto num ponto: o projecto de lei sobre as uniões de facto, uma das promessas eleitorais de Prodi, foi colocado numa gaveta, com grande satisfação vaticânica que, mais uma vez, mostrou que é o Estado dentro de um Estado quem manda na política italiana.