O «abuso» ateu
Há uns tempos, a propósito do autocarro ateu, dizia o Daniel Oliveira, «Ou seja, a Igreja estava convencida que os ateus, apesar de o serem, até achavam que Deus existia. Ou, talvez mais certo, a Igreja tolera a existência de ateus, desde que não digam que o são», continuando «Mas, para a Igreja, a simples ideia de que os ateus digam em público o que pensam e sentem é um “abuso”.» Na nossa caixa de comentários, um dos nossos leitores mais devotos elabora sobre esse «abuso» que é, em sua opinião, um «forte estímulo» para fundamentalismos sortidos para além de ser o culpado do renascer do integrismo católico.
Claro que é um pormenor irrelevante que o integrismo católico nunca tenha de facto morrido e tenha tido como principal mentor o Arcebispo Marcel Lefebvre cuja SSPX foi recentemente reintegrada no seio da ICAR. Ou quiçá pense que o foi por «culpa» dos ateus ou que o livro de Lefebvre «Acuso o Concílio», em que Lefebvre expõe os erros do Concílio Vaticano II, na realidade se chama «Acuso os Ateus»...
As afirmações deste leitor não são originais, já Bento XVI e outros tinham depositado nos ateus o ónus do fundamentalismo islâmico. Lembro-me em particular duma diatribe contra os ateus de Jaime Nogueira Pinto, numa opinação no Expresso intitulada «Guerras ‘religiosas’, não obrigado» (link reservado a assinantes) a propósito da guerra dos cartoons. Nogueira Pinto considerava que as «provocações dos fundamentalistas laicos do Oeste», aqueles que defendem «o humanismo laico, a democracia participativa, a cidadania vigilante, os direitos do homem» eram de facto as responsáveis por mais «uma guerra ‘religiosa’, provocada e chefiada por ateus»…
De facto, nada irrita tanto alguns crentes como a existência de ateus que se atrevem a dizer que o são. Há uns tempos li um artigo na Homiletic & Pastoral Review, publicada desde 1978 pela Ignatius Press, a editora jesuita fundada por Joseph Fessio, um doutorando de Bento XVI, que carpia exactamente isso, ou seja, que os ateus se atrevessem a vir a público dizer que são ateus, uma ignomínia apenas possível pela «decadência» da moral e dos bons costumes.
O referido texto - de que vale a pena ler a dissecação feita por um matemático americano- , foi escrito por David Carlin que, entre outras pérolas redondas de raciocínio, escreveu um livro a explicar que um católico não pode ser democrata. No artigo pastoral, Carlin perde-se em reminiscências dos bons velhos tempos em que negros, por causa da «raça» errada, e ateístas, pelas razões óbvias, eram cidadãos de segunda classe.
O sociólogo explica que a culpa deste estado de coisas, o execrado reconhecimento de ateus e agnósticos como seres humanos de plenos direitos, deve ser assacada a autores como Dawkins, Dennett ou Sam Harris, que, completamente sem vergonha na cara, quebraram uma regra fundamental das «boas maneiras» culturais americanas prevalecente em boa parte do século XX: enquanto dizer mal do ateísmo era uma virtude expectável de qualquer bom americano, os ateístas, conscientes do seu (reles) lugar na sociedade, dever-se-iam abster de tecer quaisquer comentários em relação à religião. Aliás, enquanto ateus dever-se-iam abster de abrir a boca, ponto.
O autor lamenta ser «pouco provável que a América teísta volte alguma vez a poder esquecer que um número significativo dos seus concidadãos são ateístas ou a pretender que esta minoria ateísta simplesmente não conta», uma vez que os ateístas americanos «estão a sair do armário» assumindo a defesa do «ateísmo teórico».
O ilustre autor dá então asas à imaginação efabulando sobre a distinção entre ateísmo teórico e ateísmo prático. O último, segundo o piedoso autor, é fácil de reconhecer pelos seus sintomas: liberdade sexual, aborto (na realidade as estatísticas norte-americanas indicam que os católicos apresentam taxas de aborto muito superiores à média e os ateus as mais baixas), casamento homossexual, eutanásia e talvez poligamia - e eu que pensava que poligamia nos EUA estava associada a uma denominação cristã, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
Fiquei confusa por Carlin ter esquecido o que chama relativista «princípio da liberdade pessoal» nestas manifestações de ateísmo prático que, em artigos anteriores, na mesma revista e noutras, Carlin considera ser obrigação do «verdadeiro» cristão combater, nomeadamente deve ser um cruzado contra a tolerância pelo outro que permite esta liberdade abominável, uma «mutação» moral darwinista imposta pelo «inimigo secular».
De facto, tal como para a ICAR e muitos crentes «Estes, para quem a liberdade é mais sagrada que Deus», como carpia César das Neves também a propósito da guerra dos cartoons, estes que «estão dispostos a incendiar o mundo» pela manutenção dessa liberdade, estes ateus abusivos que não se calam, são para Carlin os únicos culpados de todos os males do mundo.