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O Neonderthal

 

Tempos houve em que era um insulto. Chamar alguém de Neanderthal. Era sinónino de brutalidade, pouca inteligência, atraso, estupidez. De um modo geral, as pessoas (habitualmente crianças) que chamavam isso a alguém não sabiam bem o que estavam a dizer. Era apenas uma forma de chamar "estúpido" a alguém. Uma forma elaborada, de miúdos que gostavam de refinar o insulto e que iam buscar termos estranhos. Se o visado não conhecesse, tanto melhor. Só mais recentemente fizeram a sua aparição o mongo, o grunho, o def e o duh!. De resto, o Neanderthal era apenas uma forma de designação de "pré-histórico", com toda a carga negativa de atraso que o termo contém. "Pré-histórico" é uma designação  terrível, um epíteto demolidor. Algo anterior à Humanidade propriamente dita, entre "Idade da Pedra", "Homens das Cavernas", "Trogloditas", "Uga-Buga", os Flintstones, mamutes, Rachel Welch e os dinossauros. "Pré-histórico" como "sub-humano". Desde há umas décadas, o panorama tem vindo a mudar. Hoje em dia, e na minha modesta opinião, exagerou-se na dose.

Primeiro eram as cavernas e a "pedra lascada". A inexorável divisão em "selvajaria", "barbárie" e "civilização". Depois veio Olduvai, Leakey e a Lucy. Gordon Childe e uma nova forma de estudar o passado longínquo. Os horizontes da nossa retaguarda temporal alargaram-se. E iluminaram-se, também. Uma abordagem aprofundada e multidisciplinar, deitando mão aos recursos da arqueologia, da linguística, da antropologia cultural.  E com o inestimável contributo de outras disciplinas e instrumentos, como o carbono-14 e a dendrocronologia. O estudo da cultura e da economia material, rumo a uma compreensão das mentalidades e já não apenas uma análise tipológica dos artefactos e dos utensílios. Towards an archaeology of mind, de um senhor chamado Colin Renfrew, era o último grito em termos de abordagem da Pré-História, quando estudei estes temas, há já duas décadas. Muito se terá avançado entretanto. Lentamente, gradualmente, começou a divulgar-se a ideia de que os nossos antepassados não eram uns Neanderthais no que o termo tinha de insultuoso.

O Neanderthal tornou-se humano. Embora não nossos antepassados directos, estando ainda em discussão se houve ou não cruzamento com os Homo sapiens sapiens de que todos descendemos, se se extinguiram ou se se "fundiram" na estirpe humana como a conhecemos hoje, é geralmente aceite de que as diferenças eram bem menores do que se pensou durante muito tempo. A sua representação suavizou-se. Do hominídeo simiesco das primeiras representações passou-se a feições mais humanas, menos bestiais. O filme A Guerra do Fogo foi, talvez, o melhor veículo de modificação desta imagem, se bem que, já nessa altura, várias falácias se lhe pudessem ser apontadas: a promiscuidade sexual e a inexistência de uma linguagem articulada, entre outras.

Hoje, o Neanderthal está em processo de reabilitação plena. De tal forma que a recente notícia de uma primeira versão da sequência do seu genoma tornou-o uma espécie de alter ego da Humanidade. Perdeu de vez os seus traços simiescos e ganhou dignidade. Uma dignidade discutível, contudo. A mais recente reconstituição (do Instituto de Antropologia da Universidade de Zurique) é de uma criança (a 7ª da ilustração). Pele branca e sedosa, feições delicadas, olhos grandes e verdes, cabelo loiro. "Um miúdo alemão", diria eu se o visse na rua. Quase parece saído de um colégio, de uma vida de conforto, não fosse o cabelo ligeiramente desgrenhado. É esta a reabilitação do Neanderthal: "mais humano" significa "mais europeu". Porque não uma pele escura, feições negróides, olhos rasgados? Serão os africanos, os aborígenes australianos, os chineses, os austronésios, gente inferior aos caucasianos? A resposta, inconfessável, é esta: é que isso retirar-lhe-ia humanidade aos olhos dos autores. Ao ver a imagem, recordei-me imediatamente do Jesus de Nazaré de Zefirelli: um Cristo de olhos azuis e pele branca (Robert Powell), um João Baptista de olhos verdes e loiro (Michael York). Ninguém que se assemelhe a um árabe, a um palestino.

Gostaria de, um dia, ver uma reconstituição feita pela Universidade de Pequim, de Jakarta ou de Pretória.  Até lá, deixo aqui a minha sugestão de futurologia: a próxima representação do Neanderthal não deverá andar muito longe do Di Caprio.

 

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