Notas sobre o debate desta noite
Vai com adenda, com as devidas desculpas para quem já comentou.
1. O Miguel Vale de Almeida esteve absolutamente irrepreensível.
2. Com a excepção do Professor Pamplona e de José Ribeiro, o católico homossexual que saúdo pela coragem, parece que a táctica era não tocar na adopção, para não assustar. Eu disto não percebo nada, mas creio que foi um erro. Alargar o direito civil para os homossexuais implica aceitar que estes casais adoptem, pois já há inclusive homossexuais que adoptam crianças. Que tivesse sido o Eduardo Nogueira Pinto a lembrar isto não ficou nada bem. As pessoas não são estúpidas. É verdade que a fernanda precedeu o ENP, mas aqui conta menos a cronologia do que a forma como se aborda o problema e o tom da fernanda foi o de desvalorizar a questão, como se se tratasse de um falso problema. É evidente que a fernanda, que provavelmente era das pessoas que naquela sala mais tem pensado sobre estas questões, o fez na lógica da estratégia de chegar ao direito à adopção para casais homossexuais pela porta do cavalo. Esta lógica de conquista do casamento civil a dois tempos pode ser muito perigosa. Os homossexuais podem hoje adoptar como indivíduos, porque neste contexto particular a sua homossexualidade é remetida para uma espécie de clandestinidade. Esta situação será alterada quando o casamento civil os fizer sair de tal clandestinidade, como é evidente. Foi extraordinário ver que ninguém se atreveu a pegar nos comentários de Augusto Santos Silva quando clarificou a posição do PS, logo a seguir à apresentação da moção de Sócrates. A posição do PS é propor um casamento civil que não é bem um casamento civil. Era objectivamente esta proposta que estava a ser discutida. Quem fala do "simbólico" (ver adiante) tem a obrigação de clarificar a sua posição. O MVA disse a certa altura que pouco lhe importa os motivos últimos que trouxeram esta causa para o centro do debate político. Estou de acordo. Os motivos são maus mas a causa é boa. Porém, é preciso que a causa seja mesmo boa e não praticamente boa, sob pena de se perder o direito de falar no "simbólico".
3. O ENP parecia ter uma posição de princípio interessante, mas foi muito críptico de início e não respondeu bem à réplica da fernanda. Para mais, a sua ideia de que há um movimento nos media de trogloditização da posição dele (inegável, pois bastava reparar nos comentários da moderadora) e até de alguma censura foi completamente cilindrada quando José Ribeiro começou a falar, pois este tem uma autoridade moral muito superior à do ENP para falar de censuras e condicionamento de comportamentos, neste caso por parte da Igreja.
4. Isabel Moreira foi a personagem mais curiosa da noite. Não é habitual vermos uma emotividade temperada de constitucionalismo. Mas o seu ar de tédio e o tom algo ríspido de algumas das suas respostas não mancharam um dos melhores argumentos da noite, quando estabeleceu a diferença entre estar errado (no caso do incesto) e ser errado (supostamente, no caso do comportamente homossexual). Foi a melhor resposta que ouvi até hoje ao argumento do casamento incestuoso. Apesar de subtil, é possível que pegue. Não temos grande tradição em filosofia, mas ao contrário de outros povos temos dois verbos distintos - ser/estar. Pode ser que ajude.
5. Estes debates são um pouco como as competições de ginástica, que incluem os exercícios obrigatórios. Todos foram cumpridos, do argumento do incesto/poligamia ao da família como incubadora da sociedade. Neste sentido, foi um bom debate. Por outro lado, só foram timidamente afloradas as duas únicas questões que uma pessoa civilizada (eu e uns amigos meus) considera importantes, a saber: a adopção (por estratégia de uns e inépcia de outros) e o direito à dimensão simbólica do casamento (apenas o MVA, quase no fim, foi luminoso, mas o tópico pedia muito mais). Neste sentido, foi um péssimo debate.
6. Assistimos à derrota total dos partidários do casamento como direito exclusivo dos heterossexuais. Total. Quando um professor universitário, que para mais fez uma tese sobre uniões de facto, se lembra de argumentar com a impossibilidade de um casamento civil para um bissexual, só sobram duas hipóteses: ou estamos perante uma manifestação de estupidez ou perante a manifestação de um pensamento condicionado pelo preconceito. E quando alguém se lembra de dizer que "não há estudo nenhum" que indique não haver problema em uma criança ser educada por pais do mesmo sexo, só sobram outras duas hipóteses (note-se que nem é preciso debater a imparcialidade de tais estudos): estamos perante um ignorante ou um argumento desonesto.